Sem Palavras.

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Olho em sua direção. Ela não me vê.
Está mergulhada no novo caso que chegou às suas mãos. Reparo como não presta atenção em nada além de seu trabalho, dos papéis jogados sobre a mesa. Escreve, rabisca, sublinha… Anota cada detalhe, cada linha que julga ser importante. A paixão salta de seus dedos. Poucas vezes vi alguém dedicada, tão apaixonada. Pergunto-me como pode deixar sua vida escapar de seu controle para dedicar-se inteiramente a um marido que nunca lhe deu valor.
Continuo observando-a sem que me veja e um arrepio sobe por minha espinha. Corre pelos braços e em seguida desce para as minhas pernas, até me tomar por inteiro.
Ajeito-me na cadeira, fecho o botão do paletó. Respiro fundo e penso se ela não está reparando em meu desconforto. Pode parecer loucura, pois ela nem está olhado. Parece que nem estou presente na sala. Continua afogada nos papéis. Ainda assim, pergunto-me se não estaria apenas disfarçando para não ter de falarmos sobre a tensão que permeia nossos encontros nos últimos meses.
Ângela é muito perceptiva e quando seu olhar captura o meu sinto-me como se estivesse nu à sua frente. Como se pudesse decifrar cada movimento, cada traço de meus pensamentos. E estes são todos para ela. Todos, todos por ela. Mesmo evitando conversar sobre o assunto, sei que tem pleno conhecimento do que eu sinto pela sua pessoa, pela sua alma.
Cruzo minhas mãos sobre o colo e abaixo os olhos. Tenho de fazer um esforço sobre-humano para mantê-las quietas. A esquerda está louca para tocar sua mão apoiada sobre a mesa e a direita mal pode esperar para adentrar seus cabelos negros e lisos para atrair seus rosto até o meu. E meus lábios… Ah! Esses estão aflitos! Tenho que mordê-los por um instante, a fim de conter o enorme desejo que se apoderou deles.
Engulo em seco e me pergunto se ela não está sentindo o mesmo. Se não está sentindo uma mínima vontade sequer de tocar a minha pele, de fazer uma carícia silenciosa e inocente que não prejudicará ninguém. Ninguém além de meu coração apaixonado.
Quero falar. Quero colocar pra fora de uma vez todas essas sensações guardadas com muito cuidado dentro de meu peito há dez anos. Quero implorar para que largue o marido de uma vez por todas e que dê uma chance para continuar o que começamos nos tempos de faculdade. Quero deixar bem claro o quanto estou disposto a sacrificar minha vida, se for necessário, apenas para fazê-la feliz.
Mas me calo. Como sempre.
Por respeito a ela. Pelo meu orgulho.
Pelo seu quase ex-marido. Pelos seus filhos.
Por uma infinidade de motivos que parecem crescer a cada dia de silêncio.
Me calo e continuo fingindo que tudo está bem. Que os olhares trocados são apenas de dois colegas de trabalho. Que nossas conversas sobre filosofia e vida são apenas palavras divididas por duas pessoas que se conhecem há mais de dez anos. Finjo que poderemos ser apenas isso: amigos. Amigos até o fim de nossas vidas.
Talvez um dia aconteça. Talvez um dia eu mereça ser o dono de seu sorriso, o alvo de seu olhar misterioso e profundo ou o colo de suas dores e aflições. Talvez um dia eu apareça na janela de sua casa, bêbado, com o propósito de explicar que tudo o que vivemos no passado ainda se faz presente dentro de mim. Talvez um dia eu pare o elevador ou cause uma pane na eletricidade apenas para dizer que ela é a mulher da minha vida. Que sempre soube disso desde o primeiro dia que a vi.
Mas não consigo. Não posso. Não devo.
Enquanto isso, enquanto nenhuma atitude era tomada e nenhuma palavra era dita, nossos encontros diários terminariam sempre da mesma forma: fingíamos que nada acontecia, trocávamos um último sorriso furtivo e nos afastávamos da mesma forma com que nos aproximamos pela primeira vez, dez anos atrás: Sem palavras.

Evelyn Marques

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