Cidade do Vento [versão 2023]

Eu tive um sonho. O mais belo de todos. O mais estranho de todos. Mas principalmente, o mais verdadeiro de todos.
Andava por uma longa estrada, sem caminho e sem rumo, parecia que eu estava em busca de algo, ainda que não soubesse certamente o quê.
Uma leve brisa soprava meus cabelos, empurrando-os para frente. Era como se o vento estivesse me dizendo para continuar nos momentos em que eu tinha vontade de desistir. Estava sendo empurrado, guiado para algum lugar. Para alguém.
E então, escutei uma voz.
Um sussurro.
Era como se o vento estivesse falando comigo.
Era como se o vento estivesse me chamando.
Assim que abri os olhos ao despertar, decidi seguir esse vento. Há sonhos que não são simplesmente sonhos e sim algum aviso para mudarmos nossa forma de ser ou de viver. E estava na hora de pegar a estrada. A estrada da qual havia sonhado. E deixar que o vento me guiasse.
Com uma mochila nas costas e sem esquecer das pessoas que estava deixando para trás, dei o primeiro passo para sair de casa. Estava em busca de algum maravilhoso mundo novo ou de alguma nova canção para minha vida tocar.
A verdade é que eu estava em busca da vida. E só poderia encontrá-la se fosse atrás do movimento.
Um convite bate à nossa porta todos os dias. Um convite invisível, talvez também incompreensível, mas que está ali. Porém as pessoas não veem, viram a cara, têm medo. Elas não querem sair da rotina. Porque o desconhecido é um terreno bastante perigoso.
Eu atendi ao convite da vida. E estava à procura da felicidade. 
Durante o caminho encontrei muitas pedras. Enfrentei muitas tempestades, passei fome e sede. Lutei contra dragões perigosos e andei sobre o mar. Saltei até segurar uma nuvem em minhas mãos e, ao prová-la, vi que era mesmo feita de algodão doce.
Cumprimentei fadas, lutei ao lado dos elfos e ajudei aos duendes reestruturarem uma floresta destruída pelo fogo da ganância e do poder.
Andei mais por vários dias. Em uma noite de exaustão e desânimo, me deitei sob as estrelas, pensando que tudo tinha sido em vão. Por que eu, aquele típico ser humano que está sempre querendo mais do que pode ter, ainda não estava satisfeito? Por um momento a razão falou mais alto e pensei que talvez fosse uma completa loucura largar a minha vida para buscar algo que eu nem mesmo sabia o que podia ser. E entre pensamentos abatidos e desesperançosos, adormeci.
Sonhei com anjos. As nuvens – que eram mesmo de algodão doce – estavam repletas deles, vestidos com suas túnicas brancas e abençoados com as auréolas em suas cabeças. Todos me observavam, enquanto eu seguia deitado na relva, encarando todo aquele público que me olhava. De repente o menor dos anjos saiu detrás das nuvens, com algo em sua mão. Era uma criança, que descia dos céus para me dar um presente.
Eu não conseguia me mover. Estava entorpecido por toda aquela áurea angelical. A menina loira e de cabelos cacheados colocou algo entre minhas mãos. Mas era invisível.
Ela meu deu um beijo e me disse: “Siga a rosa branca”.
E então partiu. E eu acordei.
O vento soprou no instante em que abri meus olhos. O vento outra vez. Ele me passava as mensagens, ele me impulsionava a continuar.
Peguei novamente minha mochila e reconstruí os sonhos e as esperanças. Se eu já havia percorrido tanto, deveria ter algum propósito. Ninguém recebe tantos sinais se não for para segui-los. E eu seguiria o meu destino.
Parei de contar os dias, as horas, os minutos, pois tudo isso atrasa a vida. Deixei o sopro do vento me conduzir para o caminho certo, acompanhei seu rumo e prossegui sem medo. O que interrompe a estrada de alguém não são as tempestades ferozes ou o sol escaldante. É simplesmente o medo. E eu fiz questão de mantê-lo bem longe de mim.
Uma canção de amor sussurrava em minha mente quando pisei no primeiro paralelepípedo. Só então notei que a estrada arenosa havia acabado e que havia chegado a algum lugar. Levantei meu rosto e pude ver uma cidade à minha frente, com um arco-íris circundando-a devido à leve chuva que havia caído junto com o sol que escalava o azul do céu aos poucos.

“Seja bem-vindo à Cidade do Vento”

A inscrição na placa de madeira fixa na entrada fez meu coração saltar.
Eu tinha seguido o vento. E ele havia me trazido até aqui.
Como mágica, o vento começou a soprar em minhas costas e eu avistei, na primeira casa onde minha visão conseguia alcançar, uma mulher sentada em um pequeno banco. Meus olhos não conseguiram desviar para outro lado e percebi quando ela me avistou também. Mesmo de longe, pude ver um lindo sorriso se abrir em seu rosto. Ela veio caminhando até a mim, com seus cabelos balançando pelos ares e, quando se aproximou, vi que tinha algo em sua mão: uma rosa branca.
Naquele momento meu peito encheu-se de um ar mais puro, de uma felicidade indescritível.
Nunca a tinha visto em minha vida. Mas a conhecia de muito antes.

— Estás aqui. Finalmente. – disse com a voz baixinha, quase como num sussurro, e sorriu em seguida.
— Estava esperando por mim? – indaguei.
— Você não faz ideia de quanto tempo te esperei.
— E você não faz ideia do que eu fiz para te achar.

E então ela segurou minha mão como se não pretendesse mais soltá-la. Mesmo não tendo se apresentado, eu a conhecia. Porque não são necessários nomes para identificar alguém. Mesmo que se passem vidas ou eras, quando se trata de um reencontro, a gente sempre sabe.
E sentindo seus dedos se entrelaçarem aos meus, me conduzindo para dentro da Cidade do Vento, percebi, com um enorme alívio e conforto no peito, que havia conseguido alcançar meu objetivo.
Tinha encontrado o meu lugar.
Finalmente.
Eu estava em casa…

O Girassol

Numa manhã de primavera, um girassol abriu-se em flor pela primeira vez.
Quando os primeiros raios do sol tocaram suas pétalas, apaixonou-se. A luz atravessou suas folhas, passou pelo caule, até tocar a raiz e fez com que o pequeno girassol transbordasse de amor em cada pedaço de sua existência. Era recém-chegado à vida, mas o girassol já sabia que havia nascido, que fora criado para amar o sol e para sempre ser-lhe fiel.
Não havia outras flores ao redor. Era uma flor solitária que tinha florescido em um vasto campo verde com vista para a montanha. “Assim seria melhor”, ele pensou. Dessa forma poderia amar sozinho o sol e ser amado por ele, sem que nenhuma outra flor entrasse no caminho para competir.
Durante todo o dia o girassol sentiu-se feliz para sempre. Seria eterno enquanto o sol existisse. O sol insistia em mudar de lugar, movimentando-se da direita para a esquerda lentamente, afastando-se cada vez mais da flor apaixonada. Mas o girassol, insistente, seguia seu rastro movendo também seu centro da direita para a esquerda, sem deixar o amado sair de vista. Entretanto, apesar das tentativas, o sol parecia escapar-lhe cada vez mais, indo em direção à montanha. Então, foi desaparecendo de pouquinho em pouquinho, até deixar somente um rastro de luz amarelada que contornava a imperiosa montanha.
A brisa gelada trouxe consigo o crepúsculo. O girassol, agora doído e desesperado, não podia mais seguir o sol. Sua luz havia desaparecido por detrás da montanha e era impossível correr até o outro lado para ver onde o seu amado havia se escondido.
O girassol tentou falar, pedir para que o sol ficasse, para que não o deixasse… mas não tinha voz. Era uma planta inútil, presa à terra, alma solitária em um terreno intocado por mãos humanas. O sol era sua única esperança de vida. Se o sol não estava ali, não poderia mais existir.
A noite apareceu por completo quando toda a luz do sol foi substituída pelo brilho das estrelas. O girassol, triste e desolado, curvou-se, encarando a terra que o aprisionava. Seu corpo não era mais preenchido de luz, de calor, de nada. Era uma flor vazia, sem propósito de existência, sem ter para quem mirar o seu centro. A tristeza do girassol arrebentou-lhe, enfraqueceu-lhe as pétalas, que caíam uma por uma sobre o campo verde, que assistia ao desespero da enamorada flor sem nada poder fazer.
Durante toda a madrugada, o girassol foi definhando aos poucos, desprendendo-se de si mesmo, desprendendo-se da vida. A cruel solidão da noite o desmanchou em fragmentos com suas mãos frias e impiedosas. Olhando uma última vez para a montanha que escondeu o seu amado para sempre, o girassol deixou-se terminar pela escuridão que o devorou.
O vento veio recolher os seus restos e os levou pelos ares, carregando sua alma em direção ao desconhecido. Agora, sobre o vasto campo verde em uma madrugada de primavera, não havia mais nenhuma flor.
Quando o sol voltou a nascer na manhã seguinte, pronto para ser adorado pelo girassol apaixonado, ele não estava mais ali para recebê-lo.

#4 – O Cachorro e o Prego, um conto por Amanda Palmer [Youtube]

Hoje trago uma pequena história retirada de um livro que me marcou muito, chamado “A Arte de Pedir”, escrito pela cantora e escritora Amanda Palmer.

É uma história para se fazer uma profunda reflexão sobre as decisões que tomamos (ou deixamos de tomar) em nossas vidas.

Espero que gostem desse pequeno conto tanto quanto eu gosto!

Laila e a Primavera

É dito que a primavera vem vindo e Laila sai correndo pela grama.
Pequena moça de cabelos cacheados, loiros, até a cintura, Laila sorri para o vento fresco trajando um vestido branco, tão branco quanto os lírios que idolatra.
É dito que a primavera vem vindo e Laila acredita. Não tem noção de muita coisa, mas reconhece quando a brisa toca a sua pele de forma diferente, quando o ar gélido já não lhe oprime os pulmões e quando a esperança torna a brilhar em seus olhos castanhos.
“É primavera!” – grita a menina com a voz jovem de seus dezoito anos de idade. – “É primavera, olhem! A felicidade está voltando!”
Laila é seguida por suas cuidadoras, por moças dez anos mais velhas que ela e que sempre estão ao seu lado. Até hoje não sabe, não entende por que estão ali, por que cismam em lhe seguir, mas não importa, não importa nem um pouco!
“É primavera!”, segue gritando, enquanto rodopia com as borboletas multicoloridas ao seu redor.
É dito que a primavera vem vindo e que ele está voltando!
Laila senta-se sobre a grama, descansa de seus rodopios e olha o delicado relógio em seu pulso. Falta muito para o meio-dia e ela nem sabe ao certo porque está esperando o meio-dia. Ele não disse hora, não precisou muita coisa, só fez promessas, disse que pediria ao seu pai sua mão em casamento, como toda dama de boa família merecia, e Laila acreditava que pontualmente ali ele estaria.
É verdade, ele viria, com seu terno marrom, o cabelo engomado, com um porte de lorde inglês, coluna ereta e voz grave. Laila nunca havia visto um lorde inglês, raramente saía de casa depois de seus quinze anos completos, mas imaginava que ele parecesse um.
É dito que a primavera vem vindo e Laila gargalha de felicidade junto ao canto dos pássaros que vieram cantar com a menina uma canção de alegria e amor. Primavera significa muitas coisas, significa botões dando flor, o fim de um inverno gelado, o renascimento do sol por detrás da colina, o regresso dele, o pedido de casamento e seu final feliz!
É dito que a primavera vem vindo e ali estava ele, finalmente!
“Olhem, olhem, ele voltou!” – berrava a menina aos saltos, apontando para a imagem que via atrás dos portões de ferro que protegiam o terreno da enorme propriedade de seu pai. – “Ali está, não estão vendo? Ali vem ele, meu amor, meu amor voltou!”. Não era ainda meio-dia, pensou Laila, nem sabia que horas eram, não tinha noção das coisas, nunca teve e isso nunca importou.
A felicidade fez flores brotarem em seu peito, flores brancas, lírios, os mais belos lírios que os olhos de Laila haviam visto!
“Vamos, abram os portões! Abram os portões, ele chegou! Ele chegou!”
A menina continuava a rir com os pássaros, a rodopiar com as borboletas e a colher lírios de seu peito. Ele lhe sorria por detrás do portão e acenava, estava ali e era chegado o momento! Pediria a sua mão e Laila, a pequena e sonhadora Laila, teria seu tão esperado final feliz!


**


É dito que a primavera vem vindo, mas ela não chega, ela nunca chega para o mundo fora de Laila.
Suas cuidadoras se entreolham, tristes, esperando que o pico de euforia acabe, que um dia esse pesadelo termine, em algum momento dos anos, em algum espaço do tempo, como que por um milagre.
Suas cuidadoras esperam, como sempre esperam todos os dias, há três anos, o despertar do sonho, esperam os lírios destroçados caírem do peito de Laila para então se levantarem, colherem suas pétalas e regressarem com a menina catatônica à casa, num ciclo que não termina e não tem previsão de terminar.
Laila sonha e sorri, canta e se declara para o vento, apenas para o vento, que passa e passa invisível do outro lado do portão.

Essas Mulheres – Ebook

Mulheres fortes e ao mesmo tempo vulneráveis; mulheres que sonham voar mesmo se escondendo atrás de grades; pequenas mulheres que desejam ser grande; grandes mulheres que por dentro ainda são pequenas; mulheres que foram apagadas, mulheres que foram demonizadas; mulheres que lutam contra a própria mente, mulheres que sentem tudo intensamente; mulheres que buscam encontrar um amor, não apenas nos outros, mas principalmente dentro de si.

“Essas Mulheres” traz 14 pequenos contos sobre diversos tipos de mulheres que moram dentro de você, que moram dentro de todas nós, mulheres que desejam ter sua história contada e validada em um mundo controlado para não ouvir a voz de uma mulher.

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Sobre Palavras, Músicas e Despedidas.

piano

Os olhos cor de mel encontram os meus numa sala vazia e sombria.
O silêncio nos consome, o medo nos corrompe e palavras nos constrangem.
O que há mais a ser dito?
Depois de todos esses anos, depois de todos esses danos, o que há mais a ser dito?
Não há nada. Não há uma única sílaba, uma única letra, uma única saída.
O ponto final em nossa história já foi posto.
Se fui eu quem colocou, se foi você quem colocou, se foram os dois, exatamente ao mesmo tempo… Isso não importa.
Nossa história acabou.
Mas quem será o primeiro a cruzar a porta?
Quisera fazer-te uma canção de despedida, escrever-te uma letra de amor perdido, mas nem isso.
As palavras nos abandonaram de vez.
O que faremos? Como sobreviveremos?
Se não podemos usá-las, então toquemos.
Toquemos uma doce melodia qualquer. Seja de Mozart, Beethoven ou Chopin.
Toquemos, ainda que seja simples, fugaz, feita em um quarto escuro às duas da manhã.
Toquemos e evitemos o constrangimento.
Evitemos o desejo errôneo de insistir em estarmos um com o outro.
Dois artistas jamais poderão tocar juntos se não estiverem afinados. Se não estiverem na mesma freqüência, no mesmo tom. Do contrário, a música não acontece, as melodias não se cruzam e tudo o que resta são duas pessoas frustradas, que fizeram de tudo para conseguirem absolutamente nada.
Não é melhor evitarmos?
Oh, não é melhor deixarmos?
Devolvam-me meu piano e me deixem respirar. Por favor, vá para o seu quarto, toque sua música, enquanto eu ficarei aqui, sozinha, largada, deixada, tentando fazer a mesma coisa com a minha alma quase apagada.
O desejo gritante e agonizante de sua companhia nunca foi o bastante para mantê-la.
Talvez você tenha desejado a minha também ou talvez apenas tenha fingido por educação.
O fato é que nenhuma canção foi composta por esta dupla fracassada, por mais que nossas mentes criativas tenham adorado o processo de criação.
Devolvam-me meu piano e me deixem tocar. Deixem-me sentir os dedos flutuarem pelas teclas brancas e negras outra vez. Deixem-me sentir ser levada pela música, por aquele toque sutil que nenhum outro instrumento é capaz de executar.
Façam com que minha alma voe para longe, para tomar um descanso, deixando corpo pesado e cansado descansar de uma vez por todas.
Deixem-me viver de música.
Devolvam-me meu piano e deixem-me viver de música.
Eu não quero mais palavras; cansei delas.
Cansei de toda a sua repetição constante, das linhas ambíguas que dizem tudo e nada ao mesmo tempo. Cansei das inúmeras rimas, do barulho seco e vazio que produzem quando são criadas.
Quero o tom úmido do dó, ré, mi e o toque sutil e anestesiante do fa, sol, la, si.
Quero viver de música.
Da música que não mente, que não engana, que não esconde.
Que não mata, que não decepciona, como as palavras fazem com maestria.
Quero viver de música e me perder em toda sua melodia.
Pois já cansei de ser a garota estúpida que ainda escreve sobre contos de fadas e acredita em magia.

Os olhos cor de mel encontram novamente os meus numa sala vazia e sombria.
O silêncio ainda nos consome, o medo ainda nos corrompe e palavras ainda nos constrangem.
Nossas almas já sabem, já entendem que nossa história já está morta.
E no fim de tudo, eu sou a primeira a cruzar a porta.

Sobre Amores e Estações.

Acordo num sobressalto, após um pesadelo.
Meu corpo ainda treme de medo e o coração disparado no peito dificulta qualquer tentativa de respiração tranqüila. Estico o braço para o lado direito da cama, em busca de seu corpo, de seu abraço, de proteção, mas não há nada. Não há nada além do lençol amassado e o vazio deixado pela sombra de sua carne.
Ponho-me de pé e passo a mão pelo rosto. Escuto o barulho da louça vindo da cozinha e mordo os lábios, sem saber como começar. Sem saber como iniciar este dia tão distinto, tão cinza, tão sombrio. Apenas mais um dentre os muitos dias acinzentados que temos vivido.
Olho no espelho. A maquiagem borrada – que havia esquecido de retirar – denuncia todo o martírio de uma noite gelada e silenciosa. Pergunto-me o que estou fazendo. Pergunto-me por que ainda sigo aqui, com os pés descalços e os sonhos destroçados. Quando olho para você, tento vislumbrar qualquer resquício de esperança, qualquer fragmento de um amor que agora parece uma lembrança longínqua. Talvez eu veja essa luz ou talvez eu apenas a imagine. Porque ainda me custa acreditar que tudo está por acabar.
Você nega. Você diz que estou louca. Você me dá todos os adjetivos do mundo e beija minha cabeça de forma condescendente antes de ir para o trabalho. Promete que nada vai mudar, que somos os de antes e que sempre seremos. Tudo o que consigo fazer é esticar meus lábios com muita dificuldade em um sorriso amargo e tomar um café bem forte, enquanto meus olhos acompanham-te deixar esta casa.
Sinto-te cada vez mais longe. Sinto-te escorregando por entre meus dedos, como grãos de areia que escorrem por minha pele até tocar o chão. Por mais que tente agarrá-los, tudo o que sobra em minha mão são grãos de terra, que parecem não significar mais nada.
Os dias passam. O calor do verão se esvai com a chegada do outono.
As folhas secas se jogam sutilmente das árvores e meus olhos acompanham cada detalhe da natureza enquanto tento arranjar alguma forma de voltar ao passado. De voltar ao primeiro olhar trocado, à primeira sensação de borboletas no estômago e o arrepio gostoso que sobe e desce freneticamente pela espinha. De retornar ao primeiro beijo, às primeiras palavras românticas e das pioneiras promessas que cruzaram seus lábios em forma de algodão doce.
Mas não há como. A porta da máquina do tempo está trancafiada, me obrigando a viver no presente. Me obrigando a olhar o fantasma do que você já foi um dia e me forçando a aceitar isso.
A pior parte de tudo é que não consigo ir embora. Não consigo atravessar a porta, deixar seus olhos cor de mel para trás, junto com todos os sonhos, todas as palavras, todas as promessas. Não consigo pegar a mala e largar o seu sorriso, a sua gargalhada gostosa e a voz que por tantas vezes sussurrou em meus ouvidos que viveríamos para sempre.
Não posso. Não consigo. Sou fraca, incapaz, inútil… Não consigo.
Meu corpo sempre dá um jeito de pedir desesperadamente pelo seu. Mesmo estando tão perto, mesmo com toda a parede de gelo entre nós, eu ainda me sinto como uma adolescente, boba, apaixonada e admirada pelo homem que você é. Afinal, não é isso do que se trata o amor? Um pouco de admiração, uma carga de paixão e muita, muita frustração? Muita, muita rejeição? Não sei o que os poetas pensam, o que querem dizer com os textos melados e sem sentido, mas, para mim, é como parece. Porque quanto mais você me ignora, quanto mais você me despreza e finge não se importar, eu sinto vontade de continuar aqui, esperando o dia em que você voltará a me amar. Esperando, sempre esperando, o dia que retornaremos aos cenários épicos dos nossos melhores momentos juntos. É doentio, é insuportável, é repugnante essa necessidade de te ter aqui, de vê-lo sempre perto de mim, mesmo que não sinta mais o mesmo por mim. É ridículo, deplorável, deprimente, mas, infelizmente, não há nada que eu possa fazer.
O inverno entra pela porta mascarado de uma corrente de ar frio.
Você está trabalhando sobre a mesa da cozinha, enquanto eu sigo com minha caneca de café forte sobre os lábios, admirando cada gesto seu. Me dou conta de que apenas um “bom dia” saiu de sua boca hoje e o como isso dói. De como o silêncio se torna enlouquecedor em meus ouvidos porque vem de você.
Há outro me esperando. Há outro me amando, me querendo, me aceitando.
Mas que outro? Quem, como? Porque não há. Não em mim. Não no meu mundo. Porque dentro de mim, fora de mim, ao redor de mim só há você. Só há você e apenas você. Apenas você e sua frieza, sua indiferença, mas ainda assim você. Eu não sei o que fazer, como proceder, mas ainda assim você.
Minha cabeça continua gritando que estamos morrendo.
Mas meu coração lembra que, após toda morte, há renascimento.
E que de cada renascimento vem um vida completamente nova para se viver.
Coloco a caneca sobre a pia de mármore e seguro de repente seu rosto entre minhas mãos. Meus lábios capturam os seus em um gesto rápido, porém profundo. Passo a língua sobre minha boca após sentir o seu gosto e respiro fundo ao sentir o sabor das memórias que construímos juntos. Porém seu rosto continua impassível, como se não tivesse sido afetado. Você apenas abre um sorriso misterioso, que sou incapaz de decifrar, e continua fazendo seu trabalho.
Estamos tão perto e me dói, me dói tanto.
Estamos tão longe e me dói, me dói tanto…
Abro os olhos e posso avistar uma flor desabrochar sobre o vaso em minha janela, anunciando o início da primavera.
Não olho para trás, com medo de ver mais uma vez o seu corpo ausente e apenas um lençol amassado e vazio. Permaneço no mesmo lugar, exausta, morta por dentro, gelada por inteiro.
Não consigo imaginar minha vida sem sua agridoce companhia, sem um dia ao seu lado, mas não há mais jeito. Talvez consertar o que está quebrado seja uma perda de tempo, quando é mais fácil e melhor trocar por outro. Talvez persistir em um amor cinzento seja o mesmo que persistir em um erro, que só cometemos porque não admitimos ao próprio orgulho de que ele estava certo. De que perdemos e que, mais uma vez, nos perdemos.
Por causa do amor. Sempre por causa do amor.
Respiro fundo e decido que já está na hora de partir. Que já está na hora de levantar e partir.
Mas não consigo. Não por fraqueza, não por incompetência, não por covardia… Não; não dessa vez.
Pois, agora, o que me puxa na direção contrária é um cálido braço que faz meu corpo chocar-se de leve contra o dele, fazendo-me arregalar os olhos.
“Não vá”, sussurra em meus ouvidos, como se tivesse lendo meus pensamentos. “Não levante. Tive um pesadelo. Fique aqui. Preciso de você.”
“E se eu realmente precisar ir?”, respondi com a voz trêmula e os olhos inundados de lágrimas cristalizadas.
“O que seria de um dia meu sem você?”, ele responde com a voz suave, delicada como veludo. “É primavera. Fique aqui. Atravessamos o vazio outono e sobrevivemos ao gelado inverno. É primavera. Não há porque ir. Fique aqui”.
Eu fico.
Não respondo com palavras, apenas o abraço.
Eu fico.
Não dou explicação para o meu choro, ele sabe.
Eu fico.
Não digo que ainda o amo, ele sente.
Eu fico.
O amor cinzento pode tornar a ser azul celeste. Pode sim. Sei disso.
Eu fico.
Consertar algo é sempre melhor que trocar.
Eu fico.
Afinal, o que seria de um dia meu sem ele?
Afinal, o que seria de um dia dele sem mim?
E o que seria do mundo sem nós dois juntos?
Eu sempre fico. Sempre.
E esta história recomeça com o amor levantando-se após a longa e árdua batalha dizendo, com todas as letras, para o derrotado orgulho: “Você perdeu. Porque eu… Ah! Eu finalmente me encontrei”.

Inspirado da música “Que Sería?”, de Francisca Valenzuela.

Rosa e Eucalipto, parte 2.

parte 2

Meus olhos correm pela multidão à sua procura.
Caço seu par de olhos castanhos, seu sorriso sublime, sua presença adorável.
Procuro, caço, perscruto, mas você não está lá.
Olho o relógio pela milésima vez, observando que você está atrasado. Muito atrasado.
Meu coração palpita no peito em uma ansiedade irritante que não consigo arrancar daqui.
Ele bate, bate, bate; e cada batida é uma letra do seu nome que está tatuado bem dentro de mim.
Ele está gritando por você.
Será que não está ouvindo? Onde quer que esteja, não o está ouvindo? Não está me ouvindo?
Ele grita alto (com uma grande ajuda dos pulmões), esperando que você finalmente o escute e venha mais depressa.
Oh, como se atreve?
Como se atreve a apontar-me o dedo e dizer, com todas as letras, que não te amo?
Como se atreve me olhar nos olhos e duvidar do sabor mais doce que já provei nesta vida?
Estamos apenas algumas horas apartados e a falta do seu sorriso já começa a me enlouquecer.  Apenas horas, espaços medíocres de sessenta minutos, que parecem sessenta anos.
Minhas pernas tremem, batem contra o chão, contando os microssegundos que ainda restam para eu poder visualizar seu rosto outra vez.
Por que demoras tanto?
É algum tipo de castigo? É uma punição por ainda dividir meu coração?
O que você está fazendo comigo?
Não seja como o outro.
Não me faça entrar em desespero. Não comece a provocar espasmos espinhentos por todo o meu corpo que me fazem sangrar absurdamente.
Você é a única cura para o meu vício mortal e impiedoso.
Você é sanidade para a minha loucura, a luz para a minha enorme escuridão.
E, cima de tudo e de todas as coisas, você é aquela explosiva vontade de viver, quando desejo mais do que nunca desaparecer deste mundo.
Oh, como se atreve?
Como se atreve a dizer que não te amo o bastante?
Ainda estou aqui, esperando, roendo o último que sobrou de minhas unhas e com um coração latente que continua a berrar seu nome sem cessar.
As pessoas falam comigo, puxam assuntos banais e tudo o que eu consigo fazer é presenteá-las com um sorriso amarelo e sem graça.
Eu não quero estar com elas.
Não quero conversar com elas, não quero ouvi-las ou ter de fingir uma tranqüilidade que estou longe de sentir.
Eu quero estar com você.
Viver você, respirar você, amar você.
Eu quero estar por cima de você, por baixo de você, dentro de você.
Eu quero você e todo o seu amor que corre por entre minhas veias, deixando o rastro hipnotizante de  Rosa com Eucalipto.
E a sensação de frescor e doçura arrebata-me por inteiro quando vejo sua silhueta ao longe. Você é apenas mais um ponto na multidão, quase como um fantasma do próprio corpo, mas é o bastante.
Oh, Deus, como é o bastante!
Seu andar, seu jeito, todo você.
Suas mãos, seu olhar, seu sorriso, todo você.
Seu cabelo perfeito, a cor de sua pele, todo você.
Oh, como se atreve?
Como se atreve a duvidar de toda essa carga que me atinge com tão só vê-lo?
Se isso não é amor, o que é, então?
Explique-me, diga-me… O que é?
Se eu tivesse de escolher uma cor para este sentimento, escolheria o azul.
Isso mesmo…  azul.
Porque o que sinto nada se assemelha ao rosa melado dos amores juvenis ou ao vermelho sangue da paixão carnal dos adultos.
É azul. Azul celeste, como o céu claro que vive sobre nossas cabeças.
É azul perfeito como a cor dos oceanos. É azul reluzente como uma flor exótica, raramente encontrada em lugares simplórios.
É o azul da morada dos anjos. A mesma morada onde possui uma piscina de rosas por toda a água límpida. Uma piscina de rosas e com cheiro de eucalipto.
Azul da morada para onde iremos após partirmos deste mundo. Juntos.
O fantasma de você se transforma em sua forma de carne e osso conforme vai se aproximando.
Olho para as minhas mãos e percebo que estou tremendo. Fecho os dedos, respiro fundo, tento manter o controle, mas é impossível. Meu corpo inteiro está reagindo ante à presença eminente do seu. Meus dedos tremem tanto que mal consigo pegar a alça da minha bolsa e colocá-la sobre o ombro.
Já estou de pé; já estou com os braços ansiosos para abraçar sua figura como se não houvesse amanhã.
Seu sorriso cai como uma cachoeira sobre meu corpo, como gotas cristalizadas de chuva após um longo período de sol escaldante.
Oh, como se atreve?
Como se atreve dizer que não é amor?

— Desculpe o atraso. – você diz baixinho, com sua voz carinhosa e arrependida, antes de beijar meus lábios, pondo um fim em toda esta agonia.
— Não tem problema. – repliquei ao mesmo tempo que passei o braço esquerdo ao redor de sua cintura. – O que importa é que está aqui agora. Desde que sempre esteja, desde que sempre chegue… Não tem problema.
— Vamos para casa? – perguntou enquanto começávamos a caminhar por toda a multidão de pessoas como se estivéssemos completamente sozinhos.
— Será que não vê? Será que não entende? – encarei seus olhos confusos antes de terminar a sentença e sorri. – Eu já estou em casa.