Imagine.

Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que eu gostaria de escrever.
Imagine, apenas imagine, se eu pudesse dizer que sou apaixonada pelo mar, tão apaixonada, que eu evito chegar perto pois tenho medo de deixar tudo para trás, mergulhar nele e me afogar.
Imagine se eu pudesse confessar que todo o meu corpo é estranho para mim, como se meu espírito estivesse no lugar errado, como se ele devesse estar em outro corpo, e por pelo menos um momento não sentir culpa por isso.
Imagine se eu pudesse colocar em palavras como esse corpo estranho treme cada vez que encontra outro corpo estranho e que eu tremo, eu tremo, eu tremo tanto que todo esse terremoto dentro de mim me faz esquecer as palavras de minha própria língua. Imagine como seria bom se eu não fosse julgada por isso. Imagine como seria bom se eu não odiasse a mim mesma por isso.
Imagine, apenas imagine, se eu tivesse talento com as palavras e pudesse moldar todos esses sentimentos ruins em poesia como minha melhor amiga faz. Se eu fosse capaz de usar metáforas, ritmo e imagem para descrever como eu sofro todo dia desde criança por sentir que esse lugar me faz mal.
Mas não consigo.
Eu só consigo dizer que eu sofro todos os dias desde a infância por sentir que esse lugar me faz mal. Sem metáforas. Sem ritmo. Sem imagem. Assim mesmo, de forma clara e sem graça.
Imagine o quão longe eu poderia ir se realmente acreditasse que sou uma borboleta, porque eu me sinto tão próxima a elas que esqueço ser humana. Mas não posso acreditar que sou uma borboleta porque fui ensinada desde tenra idade que sou humana, de carne, osso e sem asas, e que eu devo me convencer disso. (20 anos depois e eu ainda não consigo me convencer disso).
Imagine se eu pudesse admitir todas essas coisas em público, deixando todo o podre ir embora e finalmente deixando de vomitar sentimentos em forma de bile, de sentir meu estômago doer toda a porra do dia, deixando de ter esses pesadelos que sugam toda a energia boa da minha alma e finalmente falando, cantando, gritando, finalmente, finalmente… sendo eu.
Sem vergonha. Apenas um dia na minha vida sem sentir vergonha.
Imagine se eu pudesse viver sem vergonha. Ah, é um pensamento maravilhoso! Mas, ainda assim, apenas um pensamento.
Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que gostaria de escrever.
E pudesse viver o mar.
E pudesse me sentir.
E pudesse me relacionar.
E pudesse ser poesia.
E borboleta.
E pudesse falar.
Sem vergonha.
Simplesmente falar.
Aqui e agora.
Imagine.
Apenas imagine.

15 – Precisamos Falar Sobre Muitas Coisas, Mas Será Que Estamos Nos Ouvindo?

Conversation Pop Art

É comum vermos o termo “precisamos falar sobre” pelas redes sociais quando alguém faz um texto querendo explorar um determinado assunto polêmico para elucidar o público quanto à sua importância. Feminismo, homossexualismo, racismo, xenofobia e intolerância religiosa estão entre os temas mais discutidos e, como sempre, são temas que causam bastante discussão e seria muito saudável ter uma discussão diária sobre todas essas coisas se ao menos conseguíssemos, de verdade, falar sobre isso. O problema é que o assunto quase nunca é só falado. Ele é brigado, é berrado, se torna agressão e até uma Terceira Guerra Mundial, principalmente no Facebook. Então, do que estamos mesmo falando?
São tempos difíceis, tensos, não só para o Brasil, mas também para o mundo. As pessoas parecem estar sempre à flor da pele e prontas para fazer o Michael Douglas no aclamado “Um Dia De Fúria”. É muito mais fácil agredir alguém e perguntar depois do que praticarmos a paciência e “corrigir” algum pensamento equivocado com explicações e não xingamentos.
A humanidade está passando por uma transformação importantíssima, as sociedades estão evoluindo ao reparar os próprios erros e tentar corrigi-los através do progresso. Não é mais aceitável diminuir alguém por causa da cor da pele, pelo sexo, pela religião, pelo lugar onde nasceu etc. e cada vez mais as pessoas estão tomando consciência disso (ainda tem muita gente sem noção e preconceituosa, mas eu prefiro acreditar que a maioria está tentando melhorar e fazer deste lugar um mundo melhor). Mas nenhuma transformação ocorre de um dia para o outro. Mudar a cabeça e fazer seres humanos entenderem que precisam se respeitar acima de tudo é algo muito complicado, leva tempo e requer paciência. E estamos todos suscetíveis ao erro, sejam estes pequenos ou grandes.
Textos bem intencionados que procuram divulgar a ideia de igualdade viram discussões agressivas porque o autor empregou uma palavra ou usou um termo que não se deve usar mais. Às vezes a culpa não é nem da palavra mal empregada e sim um erro de interpretação de um leitor, que leva outros leitores preguiçosos a interpretarem com a cabeça deste primeiro leitor, e todo mundo sai partindo para uma batalha que ninguém sabe de onde saiu em primeiro lugar. No fim, todos saem agredidos e feridos e o protagonista da história, que era a causa a ser defendida, fica em segundo, terceiro ou em nenhum plano.
Precisamos falar sobre muitas coisas, todos os dias para evoluirmos, mas não estamos nos entendendo. E o mais curioso é que não estou falando de pessoas com ideias opostas, o clássico coxinhas x petralhas. Estou me referindo a pessoas que defendem a mesma causa e ainda assim conseguem arranjar um motivo para se odiarem e organizarem um motim na internet uma contra a outra. Qual é o sentido disso tudo?
É preciso entender que errar faz parte da transformação, do esclarecimento. Se aquele autor fez um texto com o intuito de falar sobre a importância de ver um ser humano além da raça e empregou aquela palavrinha errada que é uma reprodução que ele ouviu dos avós, cabe a você chegar e dizer: “Fulano, essa palavra está mal empregada por isso, isso e isso, não faz mais parte do contexto hoje em dia. Abraços!” e não sair escrevendo em caps lock que o cara é um racista enrustido. Se uma amiga sua que luta pela causa feminista acabou reproduzindo uma frase machista sem se dar conta, cabe a você explicar porque ela não deve mais usar aquele termo e porque esta frase não cabe dentro da luta feminista. E não chamá-la de machista (isso é o que mais vejo em discussões feministas!) ou falsa porque ela simplesmente se equivocou.
A verdade é que ainda reproduzimos muito do que nos foi dito ao longo da vida por uma sociedade que oprimia as minorias desde o nascimento do primeiro ser humano. Não pensamos em cada palavra que sai de nossa boca (mas devemos!) e às vezes não nos damos conta que aquilo é errado. Dê uma chance, pelo menos uma chance, de uma pessoa se equivocar antes de xingá-la de tudo quanto é nome e criar um mal estar em uma rede social ou até mesmo pessoalmente que pode deixar cicatrizes para a vida inteira. Devemos acabar com este mundo de guerras, dentro e fora das redes sociais, e não contribuir para a criação de mais uma.
Com a liberdade de expressão que a internet deu para as pessoas da nossa geração, queremos e precisamos falar sobre muitas coisas. Entretanto, é importantíssimo e urgente refletir o quanto, de verdade, estamos ouvindo uns aos outros.