InstaPost #006 – Os Caminhos do Livro, Os Caminhos da Poesia

Esta semana terminei de ler um livro de poesias de uma escritora italiana chamada Martina Vivian. Nunca tinha ouvido falar nela e nem pretendia ler nada nesse idioma por agora, mas, como sempre digo que são as melhores leituras, apenas “aconteceu”.
Encontrei o livro por puro acidente em um sebo de rua, naquelas promoções maravilhosas de “leve 3 por 10”. Ele estava embaixo de um outro livro aleatório e, quando o vi, fiquei surpresa de encontrar uma coletânea de poesias em italiano, o que não é muito comum por aqui. E fiquei ainda mais surpresa quando percebi que ele estava em perfeito estado, como novo, como se nunca tivesse sido lido. Como estou praticando o idioma, pensei “por que não?”. E acabei levando o livro pra casa.
As poesias de Martina Vivian são muito pessoais, como se tivessem saído de seu diário particular. Acredito que ela tenha escrito após uma forte decepção amorosa – o que, vamos combinar, acaba gerando as melhores obras – e colocou no papel todo o seu processo de luto sobre o fim da relação e o caminho para a superação. Gostei, gostei muito. E fiquei satisfeita ao perceber que estou bem familiarizada com a língua, pois acho que entendi 90% do livro.
Ler Martina Vivian me faz pensar como nossas palavras podem viajar pelo mundo sem que tenhamos ideia. Acredito que, neste momento, a moça italiana nem imagina que tem alguém no Brasil fazendo uma análise do livro dela, alguém que se identificou com muito dos poemas e que ficou pensando como queria conversar com ela sobre a vida, pois sua visão de mundo parece um pouco com a minha. Mesmo escrevendo há tanto tempo e ter tido a sorte de ser lida por muita gente na época do Orkut, ainda fico fascinada como histórias podem atravessar fronteiras e mudar a vida de pessoas que nem conhecemos. Como estamos conectados mesmo sem ter ideia de quem somos, como diria Delta Goodrem.
Escolher o caminho da escrita, da literatura e da poesia, envolve muita coragem e determinação, pois não é fácil atrair a atenção das pessoas nesse mundo que gera milhões de conteúdos todos os dias, não é fácil ter que abrir mão de uma vida mais tradicional, por assim dizer, para se dedicar a esse tipo de trabalho onde você fala sozinho a maior parte do tempo. Não sei se o livro de Martina fez algum sucesso na Itália, pois não encontrei maiores informações sobre ele ou sobre a autora, e não sei se ela ficou ou não frustrada por seu livro não ter tido um alcance maior. De qualquer forma, de uma maneira que eu jamais vou saber ao certo, o seu livro cruzou o Atlântico, foi parar num sebo de rua, chegou até mim e me tocou profundamente. Como não ver beleza nisso? Como não achar que, no fim, por mais que pensemos que estamos falando sozinhos, tem sempre alguém em algum canto do mundo ouvindo com atenção tudo o que temos para dizer?
E é por isso que sigo fazendo o que faço: a poesia e a literatura têm uma força que foge à nossa compreensão… e acho isso tudo bonito demais! Acho que me arrependeria para sempre se escolhesse outro caminho para mim e decidisse não fazer parte disso.
Enquanto sigo meu trabalho de formiguinha, enquanto sigo gritando em um mundo onde todo mundo parece conseguir gritar mais forte que eu, só posso desejar que um dia minhas palavras também atravessem fronteiras e façam alguma diferença na vida de alguém, assim como as palavras de Martina fizeram na minha.

Resenha: Select Poems of Emily Dickinson.

“My life closed twice before its close;
It yet remains to see
If immortality unveil
A third event to me,

So huge, so hopless to conceive,
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.”

“Selected Poems of Emily Dickinson” foi o único livro que consegui ler no mês de junho (a vida anda corrida demais se concentrar parece cada vez mais difícil…) e foi uma leitura ao mesmo tempo enriquecedora e desafiadora.
A poesia de Emily Dickinson se torna ainda mais especial quando você conhece um pouco da história da poetisa e consegue enxergar perfeitamente o caráter dela em sua obra. No geral, eu não gosto de poesia muito arquitetada, como se tivesse sido feita para impressionar mais do que para tocar o leitor. Poesia para mim tem um sentido muito maior, é quase como um caminho de cura quando tudo dói aqui dentro. Poesia não tem que ser pensada, tem que ser sentida profundamente, tem que ser um espelho onde outros vão se olhar e encontrar o próprio reflexo. E é exatamente isso o que sinto quando leio a poesia de Emily, eu consigo ver um pouco de mim nela, eu consigo enxergar um pouco da minha própria vida em suas palavras, mesmo que estejamos separadas por mais de um século de distância.
Foi a primeira vez que me arrisquei em ler Emily Dickinson no idioma original em inglês e essa foi a parte mais desafiadora. Confesso que penei bastante para entender o sentido de alguns poemas em função do inglês antigo e a forma com que Emily emprega as palavras na estrutura dos versos. Creio que consegui compreender 80% dos poemas dessa coletânea, então vou considerar isso uma vitória.
Para aqueles que não conhecem a obra de Emily, recomendo que procurem saber mais sobre sua biografia, pois acho essencial para ter uma visão mais abrangente de sua obra. Para mim, ela é uma das maiores poetisas da história e a forma como descreve o mundo em versos é uma inspiração para mim como escritora.
Ressalto também a edição belíssima da Barnes&Noble que fez um trabalho de encher os olhos na produção do livro e tornou a minha experiência de leitura ainda mais bonita. Um bom livro + um belo trabalho gráfico é o sonho de qualquer leitor e essa edição é extremamente satisfatória, tanto do ponto de vista literário, quanto estético.

Título: Selected Poemas Of Emily Dickinson
Autor: Emily Dickinson
Editora: Barnes&Noble
Número de Páginas: 116

Imagine.

Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que eu gostaria de escrever.
Imagine, apenas imagine, se eu pudesse dizer que sou apaixonada pelo mar, tão apaixonada, que eu evito chegar perto pois tenho medo de deixar tudo para trás, mergulhar nele e me afogar.
Imagine se eu pudesse confessar que todo o meu corpo é estranho para mim, como se meu espírito estivesse no lugar errado, como se ele devesse estar em outro corpo, e por pelo menos um momento não sentir culpa por isso.
Imagine se eu pudesse colocar em palavras como esse corpo estranho treme cada vez que encontra outro corpo estranho e que eu tremo, eu tremo, eu tremo tanto que todo esse terremoto dentro de mim me faz esquecer as palavras de minha própria língua. Imagine como seria bom se eu não fosse julgada por isso. Imagine como seria bom se eu não odiasse a mim mesma por isso.
Imagine, apenas imagine, se eu tivesse talento com as palavras e pudesse moldar todos esses sentimentos ruins em poesia como minha melhor amiga faz. Se eu fosse capaz de usar metáforas, ritmo e imagem para descrever como eu sofro todo dia desde criança por sentir que esse lugar me faz mal.
Mas não consigo.
Eu só consigo dizer que eu sofro todos os dias desde a infância por sentir que esse lugar me faz mal. Sem metáforas. Sem ritmo. Sem imagem. Assim mesmo, de forma clara e sem graça.
Imagine o quão longe eu poderia ir se realmente acreditasse que sou uma borboleta, porque eu me sinto tão próxima a elas que esqueço ser humana. Mas não posso acreditar que sou uma borboleta porque fui ensinada desde tenra idade que sou humana, de carne, osso e sem asas, e que eu devo me convencer disso. (20 anos depois e eu ainda não consigo me convencer disso).
Imagine se eu pudesse admitir todas essas coisas em público, deixando todo o podre ir embora e finalmente deixando de vomitar sentimentos em forma de bile, de sentir meu estômago doer toda a porra do dia, deixando de ter esses pesadelos que sugam toda a energia boa da minha alma e finalmente falando, cantando, gritando, finalmente, finalmente… sendo eu.
Sem vergonha. Apenas um dia na minha vida sem sentir vergonha.
Imagine se eu pudesse viver sem vergonha. Ah, é um pensamento maravilhoso! Mas, ainda assim, apenas um pensamento.
Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que gostaria de escrever.
E pudesse viver o mar.
E pudesse me sentir.
E pudesse me relacionar.
E pudesse ser poesia.
E borboleta.
E pudesse falar.
Sem vergonha.
Simplesmente falar.
Aqui e agora.
Imagine.
Apenas imagine.

Charlotte: Uma Biografia Poética.

“Diante das incoerências maternas, Charlotte era dócil.
Domava sua melancolia.
É assim que nos tornamos artistas?
Acostumando-nos às loucura dos outros?”

Descobri o livro “Charlotte” em mais uma daquelas minhas costumeiras andanças por livrarias da cidade. Começa sempre da mesma maneira: entro na livraria pensando “sou vou entrar para sentir o cheiro dos livros e nada mais” ou “só preciso estar perto de livros para espairecer um pouco, mas prometo que não vou comprar nada” e saio de lá com mais um (ou dois, ou três…) livros na mão. A descoberta de “Charlotte” foi um encontro parecido com o que tive com “A Condessa Cega e a Máquina de Escrever”. Apenas um livro que eu puxei de uma estante qualquer, gostei da capa, gostei da sinopse e então resolvi arriscar. E é incrível como essa minha mania de encontrar livros avulsos e desconhecidos em estantes por aí sempre se mostra bastante recompensadora.
“Charlotte’, do escritor francês David Foenkinos, é uma biografia romanceada da pintora alemã Charlotte Salomon, morta em Auschwitz ao final da Segunda Guerra Mundial. O escritor tem uma verdadeira obsessão pela história desta mulher e mistura os fatos que aconteceram à ela desde o inicio de seus dias à peregrinação pela Alemanha e França atrás dos lugares onde ela pisou e o legado que deixou. Toda sua escrita é carregada de admiração e paixão, sentimentos estes que foram expostos de maneira bem interessante através de versos e não de prosa. É a primeira vez que leio uma biografia de alguém como se estivesse lendo uma poesia e gostei bastante da experiência, apesar de sentir que muita coisa se perdeu na tradução e que, em alguns momentos, a forma com que as palavras foram organizadas não fazia muito sentido em nossa língua.
Livros que envolvem a Segunda Guerra Mundial sempre me deixam com um nó na garganta ao imaginar o que todas aquelas pessoas passaram, principalmente as mulheres. Apesar da escrita de David Foenkinos ser bem fluida, o livro em si é denso, é triste e deixa uma sensação de ressaca após o término. Contudo, é uma leitura que vale muito a pena, principalmente por apresentar a nós, brasileiros, que em geral não temos muito contato com a arte alemã, principalmente porque a biografia não fala apenas de Charlotte, mas também menciona figuras importantes como Albert Salomon, pai de Charlotte e o médico que descobriu a cura para a úlcera; Paula Salomon-Lindberg, uma famosa cantora de ópera e madrasta de Charlotte; Ludwig Bartning, artista e professor na escola alemã de Belas Artes; além de nomear famosos e intelectuais como Kurt Singer, Aby Warburg e até uma breve aparição de Hannah Arendt.
Em tempos de exaltação à tortura e retorno à barbárie, livros como a biografia Charlotte são sempre um convite à reflexão e à lembrança de tempos obscuros e carregados de derramamento de sangue que não devem, jamais, voltar a nos assombrar.
“Charlotte” é um registro em forma de poesia de tudo o que pode haver de mais belo no mundo – e também de mais cruel.
Uma leitura imprescindível em qualquer época.

Título: Charlotte
Autor: David Foenkinos
Editora: Bertrand Brasil
Número de Páginas: 238

3 Poemas De Mia Couto, Do Livro “Poemas Escolhidos”

Rede

 

Mia Couto é conhecido por fazer poesia em prosa em seus livros de ficção. Ganhador de grandes prêmios, inclusive o Prêmio Camões, o mais importante em língua portuguesa, o autor de “Terra Sonâmbula”, traz neste livro poemas selecionados, que sintetizam sua obra poética até o momento.
Aqui estão meus três poemas favoritos do livro:

Doença

O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
Que ali o trouxera em tempos.

E o doutor disse o nome
Da falecida enfermidade:
“Arritimia paroxística supraventricular”

Juca escutou, em silêncio,
Com pesar de quem recebe condenação.

As mãos cruzadas no colo
Diziam da resignada aceitação.

Por fim, venceu o pudor
E pediu ao médico
Que lhe devolvesse a doença.

Que ele jamais tivera
Nada tão belo em toda a sua vida.

Sementes

Olhos,
vale tê-los,
se, de quando em quando,
somos cegos
e o que vemos
não é o que olhamos
mas o que o olhar semeia no mais denso escuro.

Vida
vale vivê-la
se, de quando em quando,
morremos
e o que vivemos
não é o que a vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeamos em pleno deserto.

A espera

Aguardo-te
como o barro espera a mão.

Com a mesma saudade
que a semente sente do chão.

O tempo perde a fonte
e a manhã
nasce tão exausta
que a luz chega apenas pela noite.

O relógio tomba
E o ponteiro se crava
No centro do meu peito

Fui morto pelo tempo
No dia em que te esperei.

 

 

Por Trás Da Porta.

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Por trás da porta está minha casa
Minha casa cheia de palavras.
Sou formada por contos, romances
Biografias, ensaios, poesias
E todas, todas essas coisas que
Em alguma biblioteca caberia.
Nasci sendo palavra, mas palavra não posso ser.
Me dizem
“Pequena criança
O mundo não é como você vê!”

Será?

Já enfrentei dragões, percorri longas estradas
Já fui príncipe, já fui princesa
E até vilã de mim mesma.
Já vi muita coisa e muita coisa quis desver.
Já me neguei, me nego
É verdade, ainda me nego
Por causa daqueles que amei.

Por trás da porta está minha casa
Minha casa cheia de palavras.
Não vou mais arrumar os móveis
Esconder as falhas ou para debaixo do tapete varrer
Tudo o que me forma, tudo o que eu preciso ser.
É na bagunça que se faz a escrita.
Não quero mais me esconder.

Eu nasci sendo palavra
E de letras quero morrer.

 

3 Poemas De Florbela Espanca, Do Livro “O Livro D’ele”

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Doce Certeza

Por essa vida fora hás de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d’oiro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d’oiro e risos de mulher,
Muito beijo d’amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer!..

Hás de tecer uns sonhos delicados…
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos !

Mas nunca encontrarás p’ la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d’amor que são meus versos

Aonde?

Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…
O eco ao pé de mim segreda… desgraçada…
E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda

Cantando como um rio banhado de luar!
Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E Só a voz do eco à minha voz responde…

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…

Versos
Versos! Versos! Sei lá o que são versos…
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz. cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.

Versos!… Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!… Sei eu lá também que são…
Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez…

Versos! Versos! Sei lá o que são versos..
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!…