Cidade do Vento [versão 2023]

Eu tive um sonho. O mais belo de todos. O mais estranho de todos. Mas principalmente, o mais verdadeiro de todos.
Andava por uma longa estrada, sem caminho e sem rumo, parecia que eu estava em busca de algo, ainda que não soubesse certamente o quê.
Uma leve brisa soprava meus cabelos, empurrando-os para frente. Era como se o vento estivesse me dizendo para continuar nos momentos em que eu tinha vontade de desistir. Estava sendo empurrado, guiado para algum lugar. Para alguém.
E então, escutei uma voz.
Um sussurro.
Era como se o vento estivesse falando comigo.
Era como se o vento estivesse me chamando.
Assim que abri os olhos ao despertar, decidi seguir esse vento. Há sonhos que não são simplesmente sonhos e sim algum aviso para mudarmos nossa forma de ser ou de viver. E estava na hora de pegar a estrada. A estrada da qual havia sonhado. E deixar que o vento me guiasse.
Com uma mochila nas costas e sem esquecer das pessoas que estava deixando para trás, dei o primeiro passo para sair de casa. Estava em busca de algum maravilhoso mundo novo ou de alguma nova canção para minha vida tocar.
A verdade é que eu estava em busca da vida. E só poderia encontrá-la se fosse atrás do movimento.
Um convite bate à nossa porta todos os dias. Um convite invisível, talvez também incompreensível, mas que está ali. Porém as pessoas não veem, viram a cara, têm medo. Elas não querem sair da rotina. Porque o desconhecido é um terreno bastante perigoso.
Eu atendi ao convite da vida. E estava à procura da felicidade. 
Durante o caminho encontrei muitas pedras. Enfrentei muitas tempestades, passei fome e sede. Lutei contra dragões perigosos e andei sobre o mar. Saltei até segurar uma nuvem em minhas mãos e, ao prová-la, vi que era mesmo feita de algodão doce.
Cumprimentei fadas, lutei ao lado dos elfos e ajudei aos duendes reestruturarem uma floresta destruída pelo fogo da ganância e do poder.
Andei mais por vários dias. Em uma noite de exaustão e desânimo, me deitei sob as estrelas, pensando que tudo tinha sido em vão. Por que eu, aquele típico ser humano que está sempre querendo mais do que pode ter, ainda não estava satisfeito? Por um momento a razão falou mais alto e pensei que talvez fosse uma completa loucura largar a minha vida para buscar algo que eu nem mesmo sabia o que podia ser. E entre pensamentos abatidos e desesperançosos, adormeci.
Sonhei com anjos. As nuvens – que eram mesmo de algodão doce – estavam repletas deles, vestidos com suas túnicas brancas e abençoados com as auréolas em suas cabeças. Todos me observavam, enquanto eu seguia deitado na relva, encarando todo aquele público que me olhava. De repente o menor dos anjos saiu detrás das nuvens, com algo em sua mão. Era uma criança, que descia dos céus para me dar um presente.
Eu não conseguia me mover. Estava entorpecido por toda aquela áurea angelical. A menina loira e de cabelos cacheados colocou algo entre minhas mãos. Mas era invisível.
Ela meu deu um beijo e me disse: “Siga a rosa branca”.
E então partiu. E eu acordei.
O vento soprou no instante em que abri meus olhos. O vento outra vez. Ele me passava as mensagens, ele me impulsionava a continuar.
Peguei novamente minha mochila e reconstruí os sonhos e as esperanças. Se eu já havia percorrido tanto, deveria ter algum propósito. Ninguém recebe tantos sinais se não for para segui-los. E eu seguiria o meu destino.
Parei de contar os dias, as horas, os minutos, pois tudo isso atrasa a vida. Deixei o sopro do vento me conduzir para o caminho certo, acompanhei seu rumo e prossegui sem medo. O que interrompe a estrada de alguém não são as tempestades ferozes ou o sol escaldante. É simplesmente o medo. E eu fiz questão de mantê-lo bem longe de mim.
Uma canção de amor sussurrava em minha mente quando pisei no primeiro paralelepípedo. Só então notei que a estrada arenosa havia acabado e que havia chegado a algum lugar. Levantei meu rosto e pude ver uma cidade à minha frente, com um arco-íris circundando-a devido à leve chuva que havia caído junto com o sol que escalava o azul do céu aos poucos.

“Seja bem-vindo à Cidade do Vento”

A inscrição na placa de madeira fixa na entrada fez meu coração saltar.
Eu tinha seguido o vento. E ele havia me trazido até aqui.
Como mágica, o vento começou a soprar em minhas costas e eu avistei, na primeira casa onde minha visão conseguia alcançar, uma mulher sentada em um pequeno banco. Meus olhos não conseguiram desviar para outro lado e percebi quando ela me avistou também. Mesmo de longe, pude ver um lindo sorriso se abrir em seu rosto. Ela veio caminhando até a mim, com seus cabelos balançando pelos ares e, quando se aproximou, vi que tinha algo em sua mão: uma rosa branca.
Naquele momento meu peito encheu-se de um ar mais puro, de uma felicidade indescritível.
Nunca a tinha visto em minha vida. Mas a conhecia de muito antes.

— Estás aqui. Finalmente. – disse com a voz baixinha, quase como num sussurro, e sorriu em seguida.
— Estava esperando por mim? – indaguei.
— Você não faz ideia de quanto tempo te esperei.
— E você não faz ideia do que eu fiz para te achar.

E então ela segurou minha mão como se não pretendesse mais soltá-la. Mesmo não tendo se apresentado, eu a conhecia. Porque não são necessários nomes para identificar alguém. Mesmo que se passem vidas ou eras, quando se trata de um reencontro, a gente sempre sabe.
E sentindo seus dedos se entrelaçarem aos meus, me conduzindo para dentro da Cidade do Vento, percebi, com um enorme alívio e conforto no peito, que havia conseguido alcançar meu objetivo.
Tinha encontrado o meu lugar.
Finalmente.
Eu estava em casa…

O Girassol

Numa manhã de primavera, um girassol abriu-se em flor pela primeira vez.
Quando os primeiros raios do sol tocaram suas pétalas, apaixonou-se. A luz atravessou suas folhas, passou pelo caule, até tocar a raiz e fez com que o pequeno girassol transbordasse de amor em cada pedaço de sua existência. Era recém-chegado à vida, mas o girassol já sabia que havia nascido, que fora criado para amar o sol e para sempre ser-lhe fiel.
Não havia outras flores ao redor. Era uma flor solitária que tinha florescido em um vasto campo verde com vista para a montanha. “Assim seria melhor”, ele pensou. Dessa forma poderia amar sozinho o sol e ser amado por ele, sem que nenhuma outra flor entrasse no caminho para competir.
Durante todo o dia o girassol sentiu-se feliz para sempre. Seria eterno enquanto o sol existisse. O sol insistia em mudar de lugar, movimentando-se da direita para a esquerda lentamente, afastando-se cada vez mais da flor apaixonada. Mas o girassol, insistente, seguia seu rastro movendo também seu centro da direita para a esquerda, sem deixar o amado sair de vista. Entretanto, apesar das tentativas, o sol parecia escapar-lhe cada vez mais, indo em direção à montanha. Então, foi desaparecendo de pouquinho em pouquinho, até deixar somente um rastro de luz amarelada que contornava a imperiosa montanha.
A brisa gelada trouxe consigo o crepúsculo. O girassol, agora doído e desesperado, não podia mais seguir o sol. Sua luz havia desaparecido por detrás da montanha e era impossível correr até o outro lado para ver onde o seu amado havia se escondido.
O girassol tentou falar, pedir para que o sol ficasse, para que não o deixasse… mas não tinha voz. Era uma planta inútil, presa à terra, alma solitária em um terreno intocado por mãos humanas. O sol era sua única esperança de vida. Se o sol não estava ali, não poderia mais existir.
A noite apareceu por completo quando toda a luz do sol foi substituída pelo brilho das estrelas. O girassol, triste e desolado, curvou-se, encarando a terra que o aprisionava. Seu corpo não era mais preenchido de luz, de calor, de nada. Era uma flor vazia, sem propósito de existência, sem ter para quem mirar o seu centro. A tristeza do girassol arrebentou-lhe, enfraqueceu-lhe as pétalas, que caíam uma por uma sobre o campo verde, que assistia ao desespero da enamorada flor sem nada poder fazer.
Durante toda a madrugada, o girassol foi definhando aos poucos, desprendendo-se de si mesmo, desprendendo-se da vida. A cruel solidão da noite o desmanchou em fragmentos com suas mãos frias e impiedosas. Olhando uma última vez para a montanha que escondeu o seu amado para sempre, o girassol deixou-se terminar pela escuridão que o devorou.
O vento veio recolher os seus restos e os levou pelos ares, carregando sua alma em direção ao desconhecido. Agora, sobre o vasto campo verde em uma madrugada de primavera, não havia mais nenhuma flor.
Quando o sol voltou a nascer na manhã seguinte, pronto para ser adorado pelo girassol apaixonado, ele não estava mais ali para recebê-lo.

Laila e a Primavera

É dito que a primavera vem vindo e Laila sai correndo pela grama.
Pequena moça de cabelos cacheados, loiros, até a cintura, Laila sorri para o vento fresco trajando um vestido branco, tão branco quanto os lírios que idolatra.
É dito que a primavera vem vindo e Laila acredita. Não tem noção de muita coisa, mas reconhece quando a brisa toca a sua pele de forma diferente, quando o ar gélido já não lhe oprime os pulmões e quando a esperança torna a brilhar em seus olhos castanhos.
“É primavera!” – grita a menina com a voz jovem de seus dezoito anos de idade. – “É primavera, olhem! A felicidade está voltando!”
Laila é seguida por suas cuidadoras, por moças dez anos mais velhas que ela e que sempre estão ao seu lado. Até hoje não sabe, não entende por que estão ali, por que cismam em lhe seguir, mas não importa, não importa nem um pouco!
“É primavera!”, segue gritando, enquanto rodopia com as borboletas multicoloridas ao seu redor.
É dito que a primavera vem vindo e que ele está voltando!
Laila senta-se sobre a grama, descansa de seus rodopios e olha o delicado relógio em seu pulso. Falta muito para o meio-dia e ela nem sabe ao certo porque está esperando o meio-dia. Ele não disse hora, não precisou muita coisa, só fez promessas, disse que pediria ao seu pai sua mão em casamento, como toda dama de boa família merecia, e Laila acreditava que pontualmente ali ele estaria.
É verdade, ele viria, com seu terno marrom, o cabelo engomado, com um porte de lorde inglês, coluna ereta e voz grave. Laila nunca havia visto um lorde inglês, raramente saía de casa depois de seus quinze anos completos, mas imaginava que ele parecesse um.
É dito que a primavera vem vindo e Laila gargalha de felicidade junto ao canto dos pássaros que vieram cantar com a menina uma canção de alegria e amor. Primavera significa muitas coisas, significa botões dando flor, o fim de um inverno gelado, o renascimento do sol por detrás da colina, o regresso dele, o pedido de casamento e seu final feliz!
É dito que a primavera vem vindo e ali estava ele, finalmente!
“Olhem, olhem, ele voltou!” – berrava a menina aos saltos, apontando para a imagem que via atrás dos portões de ferro que protegiam o terreno da enorme propriedade de seu pai. – “Ali está, não estão vendo? Ali vem ele, meu amor, meu amor voltou!”. Não era ainda meio-dia, pensou Laila, nem sabia que horas eram, não tinha noção das coisas, nunca teve e isso nunca importou.
A felicidade fez flores brotarem em seu peito, flores brancas, lírios, os mais belos lírios que os olhos de Laila haviam visto!
“Vamos, abram os portões! Abram os portões, ele chegou! Ele chegou!”
A menina continuava a rir com os pássaros, a rodopiar com as borboletas e a colher lírios de seu peito. Ele lhe sorria por detrás do portão e acenava, estava ali e era chegado o momento! Pediria a sua mão e Laila, a pequena e sonhadora Laila, teria seu tão esperado final feliz!


**


É dito que a primavera vem vindo, mas ela não chega, ela nunca chega para o mundo fora de Laila.
Suas cuidadoras se entreolham, tristes, esperando que o pico de euforia acabe, que um dia esse pesadelo termine, em algum momento dos anos, em algum espaço do tempo, como que por um milagre.
Suas cuidadoras esperam, como sempre esperam todos os dias, há três anos, o despertar do sonho, esperam os lírios destroçados caírem do peito de Laila para então se levantarem, colherem suas pétalas e regressarem com a menina catatônica à casa, num ciclo que não termina e não tem previsão de terminar.
Laila sonha e sorri, canta e se declara para o vento, apenas para o vento, que passa e passa invisível do outro lado do portão.

Do Outro Lado Do Muro.

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– Olha lá, Júlio! Aquele ali não é o Almeida?
– Onde? – a mão enrugada largou a peça de xadrez para focar no dedo apontado do amigo. – Caramba, José, parece mesmo!
– Parece nada, é ele! O que será que faz aqui? Ele não tinha recebido alta?
– Ih, surtou de novo! Só pode!
– Ei, Almeida! – chamou e assoviou. – Vem pra cá!

Almeida lançou um olhar para a enfermeira num questionamento silencioso que foi respondido com um sinal positivo.
O velho aproximou-se da mesa e recebeu o abraço dos antigos amigos.
Perguntado sobre qual razão o havia trazido de volta ao hospício, ele respondeu:

– Fingi um acesso de loucura. – os amigos o olharam com surpresa. – Não foi difícil, toda a experiência neste lugar tornou tudo muito simples de ser feito.
– Mas o sonho de todo mundo aqui é retornar para a vida do outro lado do muro. O que te fez querer voltar? – perguntou José.
– Segurança. – Almeida sentou-se frente à mesa e mexeu uma das peças de xadrez, aplicando um impensado cheque-mate. – Vocês são felizes aqui e não sabem! Acreditem: o mundo lá fora está uma loucura!

Quase 22.

22

Leia a primeira parte aqui.

Ainda havia uma menina sentada no banco da praça.
Mesmo 365 dias depois, ainda não havia ninguém ao seu lado.
Talvez ela já tivesse alguém.
Talvez já tivesse encontrado a si própria.
Talvez.
Mas continuava com as mãos sobre o colo e o olhar perdido no nada.
Ainda com chuva, ainda com sol.
Todos os dias.
Na mesma hora.
No mesmo lugar.
Uma menina que continuava sendo observada por duas velhinhas que estavam de passagem. E apenas isso.

— Olhe, Martha! Olhe quem está ali!
— Ah, a menina do banco… – comentou a velhinha sem a mesma empolgação da outra. – Ela estava sumida, não estava? Achei que estivesse… Espere! Ela está chorando? O que será que houve?
— Não está sabendo? Dizem por aí que ela foi quebrada por um “eu te amo”. E ainda não descobriu como remontar seus cacos.
— Como você sabe disso, Eva?
— Uma vizinha minha é prima de uma vizinha dela. E me contou. – respondeu sem tirar os olhos de seu objeto de especulações.
— Ahn… Ela deveria estar feliz, não? Não queremos todos amar e ser amados? Qual o problema dela?
— Não sei… Talvez, às vezes, achamos que não merecemos ser amados. E mantemos a pose, nos fingimos de forte, como se estivéssemos bem sem amor. – Eva fez uma pausa enquanto sua mente voltava ao passado. – Falo isso pela minha própria história… O orgulho pode ser um ótimo sustento, sabe? Mas um “eu te amo” dito com alma é capaz de arrebentar qualquer parede de mármore que tenhamos construído em nós mesmos. – ela notou o olhar assustado da amiga e sentiu-se constrangida. – O que foi? Disse algo errado?
— Desde quando você entende tanto de dramas adolescentes?
— Ela não é uma adolescente! Deve estar com quantos anos? Quase 22? Ela já é adulta!
— Do jeito que é desocupada e fica chorando e sentada no banco de uma praça, não parece…
— Não fale dessa forma, Martha… – repreendeu com delicadeza. – Eu não sou entendida, nem nada, e nem conheço a menina… Só penso que os anos passam correndo demais e acabamos por esquecer que um dia fomos jovens, queira você chamá-los de dramáticos ou não, com sonhos quebrados num banco de uma praça.
— Bom, minha amiga, não sei você, mas eu nunca tive tempo a perder com essas frescuras! Acho melhor irmos logo, não podemos mais perder tempo com isso.
— Ainda acho que deveria assar alguns cupcakes para aquela menina. Talvez fosse ajudá-la de alguma forma…
— Não seja tola! Como uns bolinhos podem fazer diferença na vida de alguém? E é como você disse, não sabemos nada sobre essa menina. Vai ver ela só ficou com alguma nota baixa em uma prova e você aí criando grandes histórias de amor para ela na cabeça.
— Pode ser, mas…
— Vamos deixar de besteira e ir para a missa, pois já estamos atrasadas! Hoje o sermão do padre vai ser sobre compaixão! O Padre Cícero fala com tanta sabedoria que sempre me deixa emocionada! Tenho certeza de que vai estar maravilhoso!

Martha saiu andando na frente falando sobre suas aspirações em relação à missa. Eva relutava em sair dali, mas seguiu a amiga a passos lentos. Mas antes que se afastassem muito, Eva virou o rosto para trás, apenas para ver os olhos chorosos encontrando-se com os dela.
A menina lhe sorriu entre lágrimas.

Pergunta Cretina.

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— Olá, Melissa! Como você está?

Engasgo. Pergunta cretina.
Mentir ou contar a verdade?
Hmm… Vejamos.
Odeio o meu emprego. Deveria estar criando algo, não entregando papéis, cafés e canapés para um patrão metido a besta que nem é capaz de me dar bom dia.
Minhas telas estão escondidas atrás da cama apenas para as aranhas verem enquanto não descubro a utilidade delas.
Já acordo cansada, não tenho ânimo para nada e não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida.
Tenho quase 26 anos e ainda não fiz qualquer coisa que desse orgulho a mim e à minha família.
Não tenho mais paciência para flertes, para me encantar com alguém que vai me prometer o mundo num dia e me deixar vazia no outro.
Procuro ver sentido nas pequenas coisas e às vezes adianta… Mas outras vezes me parece impossível respirar.
Suspiro.
Minto ou conto a verdade?
Clarissa é uma ótima pessoa, porém é apenas conhecida. Amiga de infância, nos afastamos, sabe como é. Não perguntou como estou querendo verdadeiramente saber como estou – do contrário teria perguntado como me sinto nesse exato momento ou algo do tipo. Ninguém faz essa pergunta desejando receber uma resposta completa e verídica, a não ser um amigo íntimo que traz seu ombro, um banquinho e muita paciência para escutar suas lamúrias. Ou alguém que cobra 150 reais por hora.
Fazem esta pergunta devido à famosa “educação”, mas de vez em quando desejo que as pessoas sejam mal educadas nesse sentido, pois ando com muita vontade de afogar alguém com a tsunami de meus problemas cada vez que essa pergunta me é dirigida. E me calo, pensando que é apenas perda de tempo e que nunca vai valer a pena.
Seria essa vez diferente?
Olho Clarissa nos olhos.
Sorrio.
Minto ou digo a verdade?
Minto ou digo a verdade?
Eu não estou bem. Eu juro.

— Eu estou ótima! E você?

Detalhes.

nico

Passei a amá-lo nos detalhes.
Como quando sorri e provoca pequenas ruguinhas debaixo de seus olhos. Ou quando franze o nariz ao sorrir, tentando sair de um clima de desconforto.
Passei a amá-lo quando notei as sardas quase imperceptíveis em uma linha que começa um pouco abaixo do olho direito, passa sutilmente pelo nariz, para terminar um pouco abaixo do olho esquerdo. Levei algum tempo para notar. São tão fraquinhas que só é possível percebê-las com o sol ou com alguma luz muito forte batendo diretamente em seu rosto. É preciso prestar bastante atenção para vê-las. E ultimamente não tenho feito outra coisa.
Seus olhos não chamam atenção por serem azuis, verdes ou qualquer outra cor que apenas uma mínima porcentagem da população mundial possua. Seus olhos são castanhos, simples, como os da maioria. Mas têm o poder de te arrastar para dentro deles sem que você tenha qualquer direito a uma escolha. Ele fala e você mal presta atenção, desejando ver o seu próprio reflexo morando para sempre naquele mar castanho. E por observá-los tão atentamente, posso jurar que eles mudam de cor quando ele está animado em relação a alguma coisa. Ficam mais claros, como se uma luz invisível acendesse detrás de sua íris. Por esse motivo, tento fazê-lo sorrir sempre que posso. Porque nada é mais inebriante do que ver a cor dos olhos do homem amado mudarem por sua causa.
E sua voz… Ah! Sua voz é como Nocturno Opus N°2 de Chopin deslizando por meus ouvidos. É suave. Me passa uma sensação de tranquilidade tão forte que apenas desejo fechar os olhos e sentir minha alma ser carregada por aquele som. Porém não é sempre assim. Quando ele está com raiva e transtornado, as palavras arranham em sua garganta. É como o rosnado de um cachorro que faz de tudo para defender o seu território. É áspero e amedrontador.
O cabelo liso – da exata cor e tonalidade de seus olhos – cai sobre a testa numa modesta franja, que não passa um milímetro sequer de suas sobrancelhas grossas. Se ele soubesse o quanto me enlouquece ver seus dedos bagunçando aqueles fios castanhos quando está cansado, com certeza não o faria com tanta frequência.
Ele não se envergonha muito facilmente, mas, quando acontece, sinto meu coração encolher quando o vejo afundar ambas as mãos no bolso e encarar o chão. Depois do momento constrangedor, ele olha cautelosamente para cima e observa se já está livre daquela sensação desagradável e corrosiva. Ao sentir-se seguro outra vez, seus lábios desenham um sorriso torto. Suas mãos colocam graciosamente os óculos escuros sobre o rosto e torna a andar com a mesma confiança e beleza de sempre.
Ele é como um vício do qual você não consegue largar. Abre um buraco em mim quando se afasta ou se penso que posso perdê-lo a qualquer instante. Ele é pior do que chocolate, heroína ou café. Porque não existe nenhum exame ou pesquisa que comprove o quanto uma única dose de seu beijo pode levá-la à dependência e, consequentemente, ao delírio.
Passei a amá-lo nos detalhes e o detalhe é que ele não faz ideia do que provoca em mim.

Ricardo e Carolina.

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Carolina está sofrendo por um amor não correspondido. É a segunda vez que isso acontece. Ela se sente rejeitada, desprezada e se pergunta o tempo todo o que há de errado consigo mesma. Carolina nunca se sentiu verdadeiramente amada por um homem e não sabe mais o que fazer para chamar a atenção de quem nunca poderá dá-la. Ela já está perdendo todos os seus sonhos e esperanças.
Ricardo foi traído. É a segunda vez que isso acontece. Mais um relacionamento foi por água abaixo mesmo depois de todas as tentativas desesperadas para mantê-lo. Ele se sente desprezado, rejeitado e se pergunta o tempo todo o que há de errado consigo. Pergunta-se porque nenhuma namorada, nenhuma mulher não pode ser fiel e amá-lo de volta. Ele já está cansado de ter o coração partido e está perdendo todos os seus sonhos e esperanças.

Carolina e Ricardo trabalham no mesmo prédio há pouco mais de um ano. Já se cruzaram inúmeras vezes, almoçaram na mesma lanchonete em frente ao prédio, mas nunca enxergaram um ao outro. Eles ainda não sabem que exatamente daqui a dois meses Carolina acordará atrasada para o trabalho. Seu relógio irá parar de repente de madrugada e o alarme do despertador não irá soar. Tomará milagrosamente um banho de 5 minutos, pensando que só conseguirá chegar no trabalho meia hora mais tarde.
Exatamente no mesmo horário que Ricardo costuma chegar de forma pontual todos os dias.
Estará chovendo.
Perto do prédio, um ônibus passará correndo por uma enorme poça d’água e irá molhá-la da cabeça aos pés. Carolina tropeçará devido a susto e irá ao chão. Será ajudada por uma velhinha logo em seguida e prenderá o choro ao pensar que aquele seria um dos piores dias de sua vida. Pensará em voltar para casa antes que um vaso caia sobre sua cabeça ou que um carro a atropele na calçada. Mas resolverá seguir em frente. Sua situação estava crítica, não poderia faltar um dia de trabalho, por mais que o mundo estivesse conspirando para que tudo desse errado.
Ricardo achará que aquele é apenas mais um dia entediante de trabalho. Ele pensará naquela manhã que não aguenta mais um emprego que não gosta, onde faz diariamente a mesma coisa inúmeras vezes, e obedecendo a um patrão sem escrúpulos do qual ele nem aguenta olhar nos olhos.
Chegará no prédio onde trabalha arrastando os pés, desejando que o dia passe o mais rápido possível. Cumprimentará a todos na portaria de forma educada, como de costume, e parará em frente à porta do elevador pensando seriamente em jogar tudo para o alto e desistir do emprego.
Preocupada com o estado de sua roupa e de seus cabelos, Carolina não reparará no homem parado à sua frente. Por estar torcendo a barra de sua camisa enquanto caminha, seu corpo se chocará com o de uma pessoa em frente à porta do elevador. Os pedidos de desculpas soarão ao mesmo tempo e só neste momento irão olhar-se nos olhos pela primeira vez.
O tempo irá parar por alguns segundos exclusivamente para eles. Afinal, ele faz isso de vez em quando. É um favor ao Universo desde o início dos tempos: Quando duas pessoas destinadas uma à outra se encontrarem, tudo deve parar. Não é todo dia que acontece. Não é sempre, não é frequente. O tempo é meio impaciente, meio preguiçoso. Sempre tem coisa melhor a fazer, gosta de trabalho, da correria da vida, do movimento do Espaço. Mas para certas ocasiões especiais, ele abria uma exceção. E essa seria uma delas.
Carolina colocará instintivamente uma mecha de cabelo atrás da orelha, sentindo-se muito constrangida por seu estado deplorável. Algo dentro de sua memória reconhecerá aquele rosto, mas sem muita nitidez e certeza. Ela apenas saberá que conhece aquele homem de algum lugar, que já o viu algumas vezes, talvez ali mesmo, naquele prédio, mesmo sem saber quando e sob quais circunstâncias.
Ricardo não conseguirá esconder o sorriso involuntário que se desenhará em seu rosto ao perguntar-se em silêncio como alguém consegue ficar tão bonita mesmo ensopada e com a roupa um pouco suja. Ele lhe dará um simples “bom dia”, perguntando-se porque se sentia tão animado ao ver aquela mulher, mesmo depois de suas decepções amorosas recentes.
Carolina irá responder ao cumprimento, querendo morrer por estar vislumbrando um sorriso tão lindo, vestida com trajes deploráveis. Isso não costuma acontecer nos romances de época que lê às três da manhã.
Geralmente, naquele prédio, o elevador está lotado de gente, seja para sair, seja para entrar. Mas não naquele dia. Não naquele dia chuvoso.
O elevador virá completamente vazio e não haverá mais ninguém ali no térreo para entrar com eles também. Afinal, o tempo parou. As pessoas estão congeladas, o trânsito não segue, os ponteiros do relógio não giram. Seus olhos estarão atentos um ao outro. Nem irão perceber o mundo paralisado ao redor deles.
Ricardo segurará a porta do elevador para Carolina entrar e ela agradecerá com um sorriso tímido.
Carolina apertará o sexto andar.
Ricardo apertará o sétimo.
Os olhares tímidos e medrosos se afastarão naquele elevador e o tempo voltará a girar. Subirão apenas dois andares antes da energia acabar devido a um curto-circuito graças à tempestade lá fora.
Carolina detesta escuridão e lugares fechados. Com o susto, pegará espontaneamente na mão de Ricardo.
Ele a segurará com carinho ao sentir o seu pânico, passando através do aperto em sua mão uma segurança reconfortante.
Nenhum dos dois conseguirá ver, mas ambos estarão sorrindo.
Nenhum dos dois poderá saber, mas ambos os corações baterão rapidamente em uníssono.
Nenhum dos dois sequer desconfiará que aquele seria um dos melhores dias de suas vidas.

Mas isso só acontecerá lá na frente, daqui a sessenta dias.
Ainda precisam derramar algumas lágrimas, cicatrizarem antigas feridas e resolverem conflitos internos antes que seja a hora do grande encontro acontecer.
Neste momento, Carolina chora debruçada em sua janela, contando estrelas no céu.
Neste momento, Ricardo está sentado em sua mesa de vime, desenhando figuras e cenários que traduzem seus sentimentos desesperados e confusos.
Ah, se soubessem! Se apenas soubessem…
Mas não sabem. Pelo menos não ainda.
Só daqui a dois meses.

Sem Palavras.

sem pa

Olho em sua direção. Ela não me vê.
Está mergulhada no novo caso que chegou às suas mãos. Reparo como não presta atenção em nada além de seu trabalho, dos papéis jogados sobre a mesa. Escreve, rabisca, sublinha… Anota cada detalhe, cada linha que julga ser importante. A paixão salta de seus dedos. Poucas vezes vi alguém dedicada, tão apaixonada. Pergunto-me como pode deixar sua vida escapar de seu controle para dedicar-se inteiramente a um marido que nunca lhe deu valor.
Continuo observando-a sem que me veja e um arrepio sobe por minha espinha. Corre pelos braços e em seguida desce para as minhas pernas, até me tomar por inteiro.
Ajeito-me na cadeira, fecho o botão do paletó. Respiro fundo e penso se ela não está reparando em meu desconforto. Pode parecer loucura, pois ela nem está olhado. Parece que nem estou presente na sala. Continua afogada nos papéis. Ainda assim, pergunto-me se não estaria apenas disfarçando para não ter de falarmos sobre a tensão que permeia nossos encontros nos últimos meses.
Ângela é muito perceptiva e quando seu olhar captura o meu sinto-me como se estivesse nu à sua frente. Como se pudesse decifrar cada movimento, cada traço de meus pensamentos. E estes são todos para ela. Todos, todos por ela. Mesmo evitando conversar sobre o assunto, sei que tem pleno conhecimento do que eu sinto pela sua pessoa, pela sua alma.
Cruzo minhas mãos sobre o colo e abaixo os olhos. Tenho de fazer um esforço sobre-humano para mantê-las quietas. A esquerda está louca para tocar sua mão apoiada sobre a mesa e a direita mal pode esperar para adentrar seus cabelos negros e lisos para atrair seus rosto até o meu. E meus lábios… Ah! Esses estão aflitos! Tenho que mordê-los por um instante, a fim de conter o enorme desejo que se apoderou deles.
Engulo em seco e me pergunto se ela não está sentindo o mesmo. Se não está sentindo uma mínima vontade sequer de tocar a minha pele, de fazer uma carícia silenciosa e inocente que não prejudicará ninguém. Ninguém além de meu coração apaixonado.
Quero falar. Quero colocar pra fora de uma vez todas essas sensações guardadas com muito cuidado dentro de meu peito há dez anos. Quero implorar para que largue o marido de uma vez por todas e que dê uma chance para continuar o que começamos nos tempos de faculdade. Quero deixar bem claro o quanto estou disposto a sacrificar minha vida, se for necessário, apenas para fazê-la feliz.
Mas me calo. Como sempre.
Por respeito a ela. Pelo meu orgulho.
Pelo seu quase ex-marido. Pelos seus filhos.
Por uma infinidade de motivos que parecem crescer a cada dia de silêncio.
Me calo e continuo fingindo que tudo está bem. Que os olhares trocados são apenas de dois colegas de trabalho. Que nossas conversas sobre filosofia e vida são apenas palavras divididas por duas pessoas que se conhecem há mais de dez anos. Finjo que poderemos ser apenas isso: amigos. Amigos até o fim de nossas vidas.
Talvez um dia aconteça. Talvez um dia eu mereça ser o dono de seu sorriso, o alvo de seu olhar misterioso e profundo ou o colo de suas dores e aflições. Talvez um dia eu apareça na janela de sua casa, bêbado, com o propósito de explicar que tudo o que vivemos no passado ainda se faz presente dentro de mim. Talvez um dia eu pare o elevador ou cause uma pane na eletricidade apenas para dizer que ela é a mulher da minha vida. Que sempre soube disso desde o primeiro dia que a vi.
Mas não consigo. Não posso. Não devo.
Enquanto isso, enquanto nenhuma atitude era tomada e nenhuma palavra era dita, nossos encontros diários terminariam sempre da mesma forma: fingíamos que nada acontecia, trocávamos um último sorriso furtivo e nos afastávamos da mesma forma com que nos aproximamos pela primeira vez, dez anos atrás: Sem palavras.

Madness.

 

mad

— Eu fiquei louco?
— Eu temo que sim. Você está totalmente pirado. Mas eu vou lhe contar um segredo… As melhores pessoas são loucas.

– Alice no País das Maravilhas.

 

 

— Eu te amo. – ela disse bem baixinho, quase como um sussurro.

Meus olhos se abriram repentinamente, tomados pelo susto.
Mila havia dito a frase de três letras no momento em que eu menos poderia esperar. De forma simples. Tão simples e tão baixinho que cheguei a indagar se não havia sido apenas um devaneio de minha mente esperançosa.
Imaginei mil momentos. Mil ocasiões, lugares diferentes, circunstâncias singulares… Imaginei pequenos filmes na minha cabeça, com uma perfeição que jamais acreditei que a realidade pudesse superar.
Eu estava enganado.
Porque as melhores coisas, as mais belas sensações ocorrem quando menos esperamos. Quando não há um planejamento calculado em uma folha de papel.
E vendo minha pequena fada adormecer ao meu lado, recordei, nostalgicamente, como tudo começou…

XX

Era quinze de novembro.
Belgrado estava sendo atingida por uma chuva torrencial que não havia sido antevista pela previsão do tempo.
Pessoas corriam de um lado para o outro nas ruas, caçando marquises ou qualquer outro lugar onde pudessem se proteger. Fugiam dos pingos gelados como se fossem mortais. Pareciam ser capazes de derreter sua pele, tamanho era o desespero de gente que passava apressadamente por mim, a maioria mulheres.
Andava sem rumo.
Deixava que a chuva fizesse seu trabalho pacificamente, sem me preocupar com resfriados, gripes ou pneumonias que sempre eram previstas nessas situações. Escutava meus próprios pés fazerem um barulhinho engraçado sobre a água.
Splish, Splash.
Era a onomatopéia da felicidade. Pelo menos pra mim.
Meus vinte e dois anos pareciam desvanecer-se no calendário assim que sentia a sensação da chuva de encontro à minha pele. Comportava-me como um garotinho imprudente que pulava e pisava nas poças d’água, sem me preocupar com o estado imundo em que minhas meias ficariam após o episódio de diversão.
No meio de minha distração infantil, não escutei o sino da porta de uma livraria ser aberta.
E tampouco vi o pequeno corpo que saiu calmamente de lá, para se chocar com o meu.

— Ai! – exclamou uma voz que ia de encontro à parede na saída da livraria. Suas bolsas voaram e caíram diretamente sobre as poças d’água na calçada ao largá-las para se escorar e evitar um acidente maior.

Imediatamente peguei as sacolas e tentei salvar os pares de livros que haviam em cada uma.
Levantei o rosto para me desculpar, mas as palavras fugiram de meu cérebro, da minha boca, de minha língua. Pareceram ter mergulhado na poça também, pois eu não conseguia encontrá-las de jeito nenhum. Haviam se perdido.
A mulher ruiva vestia uma boina lilás na cabeça que deixava sua franja perfeitamente reta em sua testa. Usava uma maquiagem leve, quase imperceptível.
Um casaco cinza a protegia do frio, junto com uma calça preta e botas da mesma cor. Algo em sua áurea gritava singularidade. Mesmo sem conhecê-la, sem saber sequer o seu nome, notava-se que ela não era como as outras pessoas. Não era como ninguém que já tive o prazer de conhecer antes. E isso foi o suficiente para me deixar disperso.

— Não vai pedir desculpas? – perguntou quando se pôs de pé outra vez. – Afinal, foi você que passou que nem um louco à minha frente, como se não estivesse olhando o caminho do qual pisava!
— E não estava olhando mesmo. – consegui responder, deixando que um sorriso bobo surgisse em meus lábios.

Havia algo nela. Um brilho diferente em seu olhar, a forma como articulava as palavras, o jeito como enrolava uma mecha de cabelo no dedo e emburrava a cara ao ver as sacolas sujas em minhas mãos.
Havia algo nela e era só no que conseguia pensar enquanto meus olhos perscrutavam suas mínimas ações, desde a forma como movia os lábios ao falar até o jeito como piscava os olhos.

— Meus livros! – gritou com um certo de desespero e arrancou as sacolas de meus dedos. – Droga! – ela escondeu-se debaixo da pequena marquise da livraria e checou o estado dos livros. – Por sorte o estrago não foi tanto. Acho que dá pra salvar… – a mulher abriu a bolsa de couro nos ombros e colocou as pequenas sacolas ali dentro. Do jeito que os livros eram grandes, imaginei que não estivesse muito leve.
— Não vai machucar seu ombro? – apontei para a bolsa e ela seguiu meu olhar. – Esse peso todo?
— Melhor entortar minha coluna do que molhá-los, não acha? – a pergunta retórica saiu com uma leve irritação junto à sua voz. Logo me dei conta de que havia esquecido de dizer algo importante.
— Peço perdão pelo… pequeno acidente. – olhei para baixo e sorri sem graça, sentindo-me um pouco idiota. – Estava distraído com a chuva.
— É, eu notei que alguém aqui parece não ter crescido. – ela deu de ombros e passou por mim, deixando-me com uma sensação estranha de vazio no peito. – Procure brincar longe de pessoas normais. Assim evitará mais acidentes.
— Pode deixar, seguirei seu conselho. – respondi com ironia, mas com certo divertimento. Não havia jeito de aquela mulher me deixar de mau humor. – Não vai abrir o guarda-chuva? – perguntei ao vê-la andar sob os pingos gelados sem sequer mexer na bolsa.

Ela virou-se para mim, com os cabelos já completamente molhados e sorriu.

— Você não é a única pessoa que gosta de brincar sob a chuva.
— Mas você acabou de me mandar brincar longe de pessoas normais! – exclamei, confuso.
— Eu nunca disse que era uma delas… Disse?

A mulher ruiva piscou para mim e virou-se para sair andando.
Eu deveria ter feito o mesmo. Deveria ter tomado o meu caminho para a casa e estudar para o vestibular que iria prestar em pouquíssimo tempo. Mas meus olhos não conseguiram desgrudar-se de sua figura que se distanciava cada vez mais enquanto mil coisas passavam pela minha cabeça. Enquanto mil sentimentos dominavam minha mente.
Naquele momento, de forma inexplicável, desejei começar algo com ela.
Uma conversa, uma amizade, qualquer coisa. Qualquer coisa que ela pudesse me dar.
Qualquer coisa que pudesse esse vazio aqui dentro preencher.
Apenas o seu sorriso, o seu olhar.
A boina lilás e a franja ruiva milimetricamente alinhada à testa.
Qualquer coisa.
E os melhores encontros da vida começam a partir de um café.

— Espere! – gritei o mais alto que pude, enquanto corria em sua direção.

A mulher ruiva parou e olhou para trás com o cenho franzido. Parecia não acreditar que alguém estava chamando-a no meio da rua, debaixo de uma chuva forte e escandalosa, e correndo que nem um alienado atrás dela.
Após alcançá-la, curvei-me e coloquei as mãos sobre os joelhos, sentindo-me extremamente cansado.

— Uau, você não parece ser alguém adepto de exercícios. – comentou com escárnio ao ver meu estado vergonhoso.
— Tem razão. Ultimamente tudo o que tenho feito é passar dez horas estudando em casa. – recuperei o ar e me pus ereto para encará-la diretamente nos olhos. – Tenho um vestibular chegando.
— Você não tem cara de nerd. – seus olhos avaliaram-me de cima a baixo. – Não mesmo.
— Enfim, eu não corri até aqui para falar do meu cérebro. – respondi, divertido. – Isso pode parecer um pouco patético, mas… Está um pouco frio, chuva, vento… – mordi os lábios, ensaiando mentalmente a melhor forma de convidá-la sem parecer precipitado ou muito idiota. – Tem uma cafeteria aqui perto. Você sabe… – deixei a frase subtendida, mesmo sabendo que já parecia precipitado.
— Você quase me derruba e agora me chama para sair. Isso é diferente.
— Digno de um filme de Hollywood, não acha?
— Muito clichê e blockbuster para o meu gosto. – ela fez uma careta debochada e não pude evitar em sorrir.
— Eu, Neven, adoro clichês e blockbusters. – estiquei a mão, esperando que ela entendesse o recado.
— E eu, Mila… – ela a apertou, aceitando o cumprimento, o que me deixou muito mais aliviado. – Prefiro os filmes Cult e Independentes.
— Você pode me mostrar o seu mundo Cult, Mila. E eu te mostro o quanto um clichê pode ser especial enquanto tomamos um café. O que acha?
— É melhor não. – disparou de repente, deixando-me surpreso. – Olha, você é um cara legal e aposto que há muitas garotas merecedoras por aí. Mas eu…
— Você o que? Vai dizer que uma garota que curte filmes Cult e odeia clichê está insegura?
— Acredite, não é insegurança. – afirmou. – Eu apenas não insistiria em mim, se fosse você. – Mila fechou os olhos e suspirou, trocando o semblante divertido por um melancólico. – É complicado. Eu, bem… Eu tenho algumas coisas para fazer, com licença. – ela tentou passar por mim, mas coloquei-me na frente, impedindo sua passagem.

Algo me impelia a continuar. Muitos no meu lugar já teriam desistido. Afinal, ela era só uma mulher adorável com quem eu tinha esbarrado na saída de uma livraria. Logicamente não era nada demais.
Mas desde quando os sentimentos são lógicos?
Se fossem, tudo seria mais fácil no mundo.
E mais sem graça também.

— Posso saber o motivo? – ela revirou os olhos e pareceu um pouco enfadada com a minha insistência. – Se não gostou de mim, é só falar.
— Eu poderia dizer isso, sim… – Mila me olhou de relance e tentou reprimir um sorriso. – Mas isso seria uma mentira. Na verdade, eu sou louca. Acho que você não deveria tentar nada comigo.
— Louca? – arqueei uma sobrancelha e tentei decifrar o que ela queria dizer com aquilo. Mas nada me veio à mente. – Não vejo uma mulher louca à minha frente. Vejo alguém que parece ser muito culta e simpática.
— É que eu estou fingindo. – ela sussurrou, aproximando-se um pouco mais, como se fosse uma agente secreta que não poderia revelar sua verdadeira identidade – Se tivesse a oportunidade de me conhecer melhor, entenderia o que quero dizer.
— Eu não me importo com isso. – coloquei as mãos no bolso e lutei contra a timidez que começou a dar as caras devido à rejeição. Ela mexia comigo mais do que eu poderia suportar. E suas recusas constantes ao meu pedido começavam a abalar minha autoestima. – Você me viu brincando sozinho, debaixo dessa chuva. De fato, estamos discutindo debaixo dela agora, como se não caísse nada do céu. Só sei que eu me sinto bem perto de você, pois até esqueci o frio. – dei de ombros, chutando o balde de vez. Se ela era realmente louca, com certeza não iria se importar de ouvir esse tipo de coisas de um estranho. – Não estou te pedindo em casamento. É só uma xícara de café. Você consegue fingir ser alguém normal mais um pouquinho… Não acha?

Mila abaixou a cabeça e respirou fundo. Parecia travar uma luta dentro de si, sem saber se agarrava o sim ou o não. E eu fiquei ali, parado, esperando os longos minutos de silencio se dissiparem com uma resposta positiva.
Seus olhos levantaram-se para encontrar-se com os meus. E então, o veredicto…

— Tudo bem. Uma xícara de café. – o sorriso oblíquo em seus lábios e o semblante enigmático que prontamente assomou sua face me deixou ainda mais curioso para descobrir o que estaria por trás de toda aquela “loucura”. – Você não faz ideia com quem está lidando…
— Estou louco para descobrir! – peguei em sua mão molhada pela chuva e depositei um terno beijo sobre seus dedos. – Você não faz ideia.

Uma vez, quando era criança, perguntei à minha mãe o que era o amor. Quando sabíamos o exato momento em que nos apaixonamos, quando sabemos que aquela é a pessoa com quem queremos passar o resto de nossas vidas. E ela me respondeu que o amor era um estrago. Para o bem o para o mal, o amor era a ruína de algo. Se era a ruína da tristeza ou da felicidade de alguém, isso era relativo. Mas o amor era aquela avalanche incontrolável, que saía arrastando tudo à sua frente, sem dó nem piedade.
Na minha vida, o estrago começou com um casal desconhecido, com roupas encharcadas, sob uma chuva copiosa.
Um casal que sabia apreciar os pingos gelados e não fugir deles como se fossem mortais.
O estrago continuou quando ela abriu o primeiro sorriso e colocou uma mecha de cabelo vermelho atrás da orelha, parecendo tímida. Quando não conseguiu encarar meu olhar e tentou se esquivar, como se não necessitasse da minha presença como rapidamente necessitei da sua.
O estrago aumentou quando ela aceitou tomar essa xícara de café comigo.
E não parou mais.
O café se transformou em almoço no dia seguinte; que se transformou em um passeio pelo museu da cidade; que se transformou em um jantar sob as estrelas nuas no céu; que se transformou no primeiro beijo.
O quinze de novembro transformou-se em quinze de dezembro; que se transformou em quinze de janeiro, fevereiro, março, abril… e assim sucessivamente.
Com os dias, vieram as brigas. Com os meses vieram as pazes. Com os anos vieram as revelações. E então, finalmente entendi sua “loucura”.
Ataques. Crises de choro. Gritos no meio da madrugada, após um dia repleto de felicidade e alegrias. Traumas. Fobias. Todos esses sentimentos inundavam um pequenino corpo que parecia desesperado para livrar-se deles.
Era complicado. Era costumeiro.
Não foi apenas uma vez em que cheguei do trabalho e a encontrei encolhida no sofá, com os olhos vidrados no nada.
Não foi a primeira vez que larguei tudo no chão e corri ao seu encontro, segurando seu pequeno corpo entre meus braços.
Não foi a primeira vez que chorou copiosamente, onde seu corpo tremia tanto que parecia ter sido tomado por uma descarga elétrica.
Não foi a primeira vez que escutei palavras desconexas sobre um passado sofrível, do qual eu pensava nunca compreender com perfeição.
Não foi a primeira vez em que tive que deixar minha dor de lado para cuidar da sua.
E eu sabia que não seria a última.

— Se pudesse… – escutei sua voz baixinha, após passar duas horas no sofá com ela, abraçando-a forte a fim de livrá-la de toda a dor. – Se pudesse voltar atrás, naquele dia, em frente à livraria… Se pudesse voltar atrás e ter seguido em frente, sem ter feito aquele pedido estúpido para tomarmos um café… – Mila levantou o rosto e me encarou com os olhos vermelhos e inchados. – Se pudesse apagar isso tudo e viver uma vida normal… Você o faria?
— Nunca. – nem precisei pensar duas vezes. Respondi com extrema segurança na voz, acariciando seus cabelos vermelhos e despenteados. – Eu preciso de você, Mila. Com suas loucuras, com suas peculiaridades, com seu jeito especial… Eu preciso de você por inteira. – segurei seu rosto entre minhas mãos e regalei-lhe o sorriso mais reconfortante e genuíno que consegui. – Talvez eu nunca tenha sido muito normal também. Sempre olhei a vida de forma diferente das outras pessoas. Sempre me senti estranho, por mais que tentasse me comportar em sociedade. Sua loucura é linda, Mila. Sua loucura é fascinante, me completa, me deixa… apaixonado! Sua loucura me salvou. Me salvou de mim mesmo, me salvou deste mundo. – rocei meu nariz no dela, pronto para beijar seus lábios até o dia amanhecer assim que essa pequena conversa acabasse. – Você sabe o quanto eu te amo, não sabe? – reafirmei o que já tinha dito mil vezes, mesmo sabendo que não iria ouvir a mesma coisa.
Mila apenas concordou e tornou a deitar a cabeça sobre o meu peito.
Eu não esperava mais ouvir a frase de três letras sair de sua boca. Não fazia falta. Suas ações me diziam mais do que um caderno de duzentas folhas todo escrito com declarações de amor.
Mila era diferente porque não usava palavras. Não porque não podia – ela podia bastante bem, principalmente quando estava excitada com alguma coisa e não parava de tagarelar sobre aquilo. Não usava porque não queria. Estava cheia delas; não as suportava mais.
Passou metade de sua vida ouvindo palavras ilusórias adentrar seus ouvidos. E acreditara nelas. Com afinco.
Tudo isso para depois descobrir que nenhuma era verdadeira.
Ela jamais diria que me amava com letras completas e eu entendia isso.
Não cobrava.
Não cobraria.
Não tinha necessidade, pois tinha plena certeza de seus sentimentos. Sabia o quanto eu era importante na sua vida.

— Mas é muito difícil. – sua voz triste e rouca reiniciou a conversa, afastando-me do mundo de pensamentos. – Eu não me agüentaria se estivesse no seu lugar.
— Ainda bem que existe um “eu” nesse mundo, e não duas de você, não é? – beijei sua fronte e limpei as lágrimas que rolavam de seus olhos. – Eu te amo, Mila. E estarei aqui para dizer-te isso cada vez que se esquecer. Cada vez que tiver uma crise e se sentir vazia, desamparada. Não importa quantas vezes o tenha dito, direi mais uma vez, se você precisar.
— Por que você faz isso? Por que ainda fica? Você não é normal, Neven.
— Então cada vez tenho mais certeza que estou com a pessoa certa.

Ela pareceu finalmente se convencer e beijou meus lábios. Tocou-me com ternura, invadiu minha alma com sua luz e seu amor. Porque eu sentia o amor de Mila em cada toque, em cada beijo, em cada olhar. E isso era mais do que suficiente para a minha felicidade.
Meus amigos não entendiam. Não entendiam porque eu agüentava seus fantasmas durante todos esses anos. Porque saía das festas correndo para segurar uma de suas crises de personalidade, porque eu dedicava toda minha atenção a uma mulher como se fosse uma criança. Afinal, existiam muitas no mundo, eles diziam. Como alguém poderia querer viver com uma mulher cheia de distúrbios pelo resto da vida?
Reclamavam, criticavam, questionavam; chamavam-na de louca por seu comportamento singular e distinto.
Diziam que eu não estava vivendo minha vida por sua causa. Eu era jovem, inteligente, com um ótimo emprego… Poderia ter a mulher que eu quisesse. Mas eles não sabiam? Eu já tinha essa mulher em meus braços.
As perguntas viam bombardeando-me diariamente e a resposta era sempre a mesma:  Eu a amava. Assim, pura e simplesmente. Não havia outro motivo, não havia qualquer outro sinônimo. Eu a amava por ser ela, por ser minha Mila, minha menina de olhos verdes e com boina lilás que eu jamais a deixava jogar fora.

— Neven, tem alguma coisa em minhas costas? – perguntou em uma tarde de domingo, onde assistíamos a um dos seus amados filmes Cult, dos quais eu raramente entendia.
— Não, Mila, claro que não. – observei com cuidado o seu corpo deitado de bruços no sofá. – Não tem nada aí.
— Tem certeza? Eu to sentindo alguma coisa… – sua mão fez malabarismos para alcançar todos os pontos de suas costas. – Mais ou menos aqui… – seus dedos indicaram sua omoplata.
— Não tem nada aí, Mila. – toquei o mesmo local, procurando algum machucado ou algo do tipo. – Está sentindo algum tipo de dor?
— Não, é só… um peso, sei lá. – Mila enrugou um nariz, como se fosse uma criança emburrada. – Ai, que saco, está me incomodando!

Ela ficou obcecada com essa idéia, tocava a região sem parar, com o rosto franzido, e logo notei que era mais alguma de suas crises.
Quando Mila ficava paranóica com algo, tinha que dar um jeito de fazê-la mudar de ideia, como se estivesse lidando com uma criança. E estava ficando tão experiente nisso, que logo achei a explicação perfeita.

— Ah, agora estou vendo! – disse, deslizando minha mão com cautela por toda a região de suas costas. – São tão brancas, quase invisíveis…
— O que é? – me olhou com curiosidade.
— São asas. – sorri divertido, vendo seus olhos se iluminarem. A essa altura já tinha perdido totalmente o fio da meada do filme. – Asas de fada. Não sabia que era uma fada, Mila?
— Sou? – ela piscava sem parar, com cara de boba, adorando aquela ideia.
— Claro! – afirmei, acreditando de fato naquilo. – Você mesma diz que é diferente das outras pessoas. Acho que agora achamos a explicação. Você é uma fadinha que veio a esse mundo apenas para se encontrar com um humano simplório como eu. Por isso suas asas ficaram invisíveis e você apenas sente o peso delas.
— Isso faz sentido. – Mila sentou-se no sofá de frente pra mim e passou seus braços ao redor do meu pescoço. – E jamais se chame de simplório outra vez. Simples são as pessoas sem graça que vivem por esse mundo com o nariz empinado e se comportando como robôs, imitando umas às outras. Você é meu tudo. Se voltar a se chamar assim outra vez, usarei meu pó de fada para te dar um castigo. Combinado? – ela roçou de leve o seu nariz com o meu, em um beijinho de esquimó. Adorávamos fazer aquilo.
— Combinado, minha fada. – meus lábios tomaram os seus com desejo e nos perdemos entre beijos e carinhos que duraram até à noite.

E após desse episódio, passei a chamá-la assim sempre que podia.
Mila não era louca. Pelo menos não para mim.
Ela era apenas mais um ser humano que caminhava por esse mundo com uma pesada cruz nas costas e uma corrente de ferro amarrada aos seus pés.
E sangrava.
Muito.
Mas ainda assim, seguia caminhando.
Porém rotularam-na por ser diferente. Porque não se comportava como as outras mulheres, não parecia como as outras mulheres e não falava como as outras mulheres. Tinha sua própria individualidade e uma personalidade extremamente forte. Se rebelava sempre que se via presa às regras de comportamento ditadas pela sociedade.
E, por isso, era julgada.
Mila era uma artista do mais alto nível. Vendia seus quadros pintados à giz de cera e, mesmo ganhando pouco, ganhava o suficiente para viver.
Suas mãos viviam sujas e borradas de giz, principalmente o preto, que era a cor que mais usava. Muitas pessoas achavam aquilo feio. Mila não cuidava das unhas e estavam sempre impregnadas de tinta. Muitas pessoas torciam o nariz e diziam que era horrível uma mulher que não tinha vaidade. Mas eu sabia que era muito mais do que isso.

— Pra que sofrer pra cuidar delas se, assim que acabar, mergulharei no mundo da arte e as sujarei outra vez? – essa foi a resposta que recebi quando perguntei o motivo pela primeira vez. – Prefiro morrer do que evitar pintar para não sujar as unhas. São só unhas, no fim das contas. Meus desenhos são minha alma.

Eu achava isso fascinante. Se minha admiração por aquele espírito crescesse um pouquinho mais, com certeza meu peito iria explodir. Não importava o que dissessem, eu achava a minha mulher a pessoa mais incrível do mundo. Seja ela normal ou não.
Mila podia ser instável. Mila podia ser frágil – com uma certa freqüência, até. Mas não uma fragilidade temperamental e sem sentido.
Após ser apresentado ao seu passado e a forma como o enfrentou, valorizei cada lágrima que rolava meu de rosto, sem rumo. Ela era essa antítese de fragilidade e fortaleza inimaginável. E não importava o que dissessem, eu tinha o maior orgulho de gritar aos quatro ventos que eu era o escolhido de um ser de outro mundo, um ser que vivia em seu próprio mundo. E este… Ah, este era especial! Cheio das formas mais belas e apaixonantes, quando não era subitamente invadido por fantasmas que começavam a assombrá-la repentinamente.
Muitos dizem que ela é a sortuda de ter encontrado alguém equilibrado como eu. Mas eu sempre digo – e não me canso de repetir – que sou o afortunado por ter tido o privilégio de receber o amor puro de uma fada.
Ser normal era entediante. No fim das contas, os loucos são as melhores pessoas que você pode vir a conhecer. E são chamados de loucos porque suas mentes estão anos-luz na frente dos que se consideram ordinários.

— Neven, você acredita em reencarnação?

Gaivotas voavam acima de nossos olhos.
Deitados na areia praia, olhando para o céu azul despido de nuvens, essa pergunta peculiar saiu de seus lábios como uma doce canção.
Virei meu rosto e observei seu olhar perdido no infinito céu acima de nós.
Sorri.
Essa imagem de nós dois poderia ser transposta para uma de suas lindas telas de pintura à cera. Na minha mente eu poderia ver o quadro pendurado no centro de nosso apartamento.
Sim, eu podia.
E havia ficado perfeito. Porque éramos perfeitos. Eu para ela; ela para mim.
Éramos perfeitos em nossas próprias loucuras.

— Não sei. – respondi sua pergunta após longos minutos de silêncio. – Às vezes sim, às vezes não.
— Posso te fazer um pedido? – ela finalmente olhou para mim, transmitindo bastante seriedade em sua fisionomia.
— O que quiser, minha fada. – escorreguei minha mão até encontrar seus dedos relaxados na areia da praia.
— Acredite. – ela apertou minha mão com força e seu olhar foi invadido por um sentimento de medo que eu não sabia como havia surgido. Com Mila era assim: as coisas simplesmente chegavam, sem você nunca descobrir por onde haviam entrado. E tudo o que eu tinha que fazer era dar o máximo de mim para expulsar os demônios intrusos sempre que se atreviam a apoderar-se de sua límpida alma. – Eu não suporto a ideia de estar ao seu lado apenas neste mundo, apenas aqui. Tenho medo de pensar nisso. – seus dentes morderam seus próprios lábios com força e uma lágrima prateada escapuliu de seu olho esquerdo. – De que eu possa vir a ser louca em alguma outra dimensão e que você não esteja lá. Ou que após a morte só exista um vazio negro, onde eu sempre terei de lidar com meus pensamentos confusos sozinha. Acredite comigo, Neven, por favor. Acredite que estaremos juntos através dos séculos… Com outros corpos, outros nomes… Mas com a mesma alma. Acredite… por mim. Talvez, se acreditarmos juntos, possa ser real.
— Eu acredito. – pus meu corpo sobre o seu e enchi seu rosto e sua pele de beijos sinceros e apaixonados. – Se você acredita, eu também acredito. Onde quer que você esteja, estarei logo atrás. É só não ter medo e virar o rosto. Estarei lá.
— Você promete? – perguntou, com os olhos vulneráveis, segurando meu rosto entre suas pequeninas mãos.
— Sempre.

XX

E havíamos parado aqui.
Após oito anos, nesse apartamento aconchegante, onde nossos sentimentos mais sinceros pintavam com cores a atmosfera do local.
Oito anos e ainda a amava como na primeira vez.
Oito anos e com a plena certeza de que continuaria amando-a ao longo de minhas futuras vidas.
Porque Mila era especial, em todos os sentidos da palavra. Foi feita cuidadosamente por alguém lá em cima, cheia de defeitos e problemas e mandada para mim.
Acreditava fielmente que era o único homem na face da Terra capaz de amá-la com todas as suas peculiaridades. E desejava ardentemente que ela jamais fosse normal como as outras pessoas.
Seu corpo e sua personalidade haviam feitos sob medida para mim.
Peço a Deus, todo o santo dia, que ele faça a bondade de me regalar a mesma mente torturada nas próximas encarnações, como Mila me fizera acreditar.
Deslizei meu corpo em sua direção e passei o braço ao redor de sua pequena figura, atraindo-a mais para perto de mim.
Seus olhos cerrados indicavam que sua cabeça criativa já passeava pelo doce vale dos sonhos. Mesmo assim, pus meus lábios ao pé de seu ouvido e deixei que minha voz sussurrasse com precisão as palavras que definiam os sentimentos de meu espírito pelo dela.
— Eu te amo também. – após oito anos, era a primeira vez que dizia a última palavra. E a sensação era boa demais. – Incondicionalmente. Com loucura.

Sentindo-me emocionado, deixei meu corpo cair sobre o colchão e admirei seu belo rosto mais uma vez.
Seus lábios esticaram-se em um sorriso inocente, ainda que sua respiração pesada indicasse que se encontrava verdadeiramente adormecida.
Em algum lugar de sua mente, de seus sonhos sagrados, minha voz ressoou como uma bênção para o seu sono. Ela me escutou. E onde quer que estivesse, em qualquer parte de seu mundo interior que pudesse estar visitando agora, Mila tinha uma certeza: ela não estava sozinha.
Porque eu seria e estaria louco com ela.
Era só ela olhar para trás e eu estaria lá.
Até o fim dos tempos.

Fim.