Sobre Amores e Estações.

Acordo num sobressalto, após um pesadelo.
Meu corpo ainda treme de medo e o coração disparado no peito dificulta qualquer tentativa de respiração tranqüila. Estico o braço para o lado direito da cama, em busca de seu corpo, de seu abraço, de proteção, mas não há nada. Não há nada além do lençol amassado e o vazio deixado pela sombra de sua carne.
Ponho-me de pé e passo a mão pelo rosto. Escuto o barulho da louça vindo da cozinha e mordo os lábios, sem saber como começar. Sem saber como iniciar este dia tão distinto, tão cinza, tão sombrio. Apenas mais um dentre os muitos dias acinzentados que temos vivido.
Olho no espelho. A maquiagem borrada – que havia esquecido de retirar – denuncia todo o martírio de uma noite gelada e silenciosa. Pergunto-me o que estou fazendo. Pergunto-me por que ainda sigo aqui, com os pés descalços e os sonhos destroçados. Quando olho para você, tento vislumbrar qualquer resquício de esperança, qualquer fragmento de um amor que agora parece uma lembrança longínqua. Talvez eu veja essa luz ou talvez eu apenas a imagine. Porque ainda me custa acreditar que tudo está por acabar.
Você nega. Você diz que estou louca. Você me dá todos os adjetivos do mundo e beija minha cabeça de forma condescendente antes de ir para o trabalho. Promete que nada vai mudar, que somos os de antes e que sempre seremos. Tudo o que consigo fazer é esticar meus lábios com muita dificuldade em um sorriso amargo e tomar um café bem forte, enquanto meus olhos acompanham-te deixar esta casa.
Sinto-te cada vez mais longe. Sinto-te escorregando por entre meus dedos, como grãos de areia que escorrem por minha pele até tocar o chão. Por mais que tente agarrá-los, tudo o que sobra em minha mão são grãos de terra, que parecem não significar mais nada.
Os dias passam. O calor do verão se esvai com a chegada do outono.
As folhas secas se jogam sutilmente das árvores e meus olhos acompanham cada detalhe da natureza enquanto tento arranjar alguma forma de voltar ao passado. De voltar ao primeiro olhar trocado, à primeira sensação de borboletas no estômago e o arrepio gostoso que sobe e desce freneticamente pela espinha. De retornar ao primeiro beijo, às primeiras palavras românticas e das pioneiras promessas que cruzaram seus lábios em forma de algodão doce.
Mas não há como. A porta da máquina do tempo está trancafiada, me obrigando a viver no presente. Me obrigando a olhar o fantasma do que você já foi um dia e me forçando a aceitar isso.
A pior parte de tudo é que não consigo ir embora. Não consigo atravessar a porta, deixar seus olhos cor de mel para trás, junto com todos os sonhos, todas as palavras, todas as promessas. Não consigo pegar a mala e largar o seu sorriso, a sua gargalhada gostosa e a voz que por tantas vezes sussurrou em meus ouvidos que viveríamos para sempre.
Não posso. Não consigo. Sou fraca, incapaz, inútil… Não consigo.
Meu corpo sempre dá um jeito de pedir desesperadamente pelo seu. Mesmo estando tão perto, mesmo com toda a parede de gelo entre nós, eu ainda me sinto como uma adolescente, boba, apaixonada e admirada pelo homem que você é. Afinal, não é isso do que se trata o amor? Um pouco de admiração, uma carga de paixão e muita, muita frustração? Muita, muita rejeição? Não sei o que os poetas pensam, o que querem dizer com os textos melados e sem sentido, mas, para mim, é como parece. Porque quanto mais você me ignora, quanto mais você me despreza e finge não se importar, eu sinto vontade de continuar aqui, esperando o dia em que você voltará a me amar. Esperando, sempre esperando, o dia que retornaremos aos cenários épicos dos nossos melhores momentos juntos. É doentio, é insuportável, é repugnante essa necessidade de te ter aqui, de vê-lo sempre perto de mim, mesmo que não sinta mais o mesmo por mim. É ridículo, deplorável, deprimente, mas, infelizmente, não há nada que eu possa fazer.
O inverno entra pela porta mascarado de uma corrente de ar frio.
Você está trabalhando sobre a mesa da cozinha, enquanto eu sigo com minha caneca de café forte sobre os lábios, admirando cada gesto seu. Me dou conta de que apenas um “bom dia” saiu de sua boca hoje e o como isso dói. De como o silêncio se torna enlouquecedor em meus ouvidos porque vem de você.
Há outro me esperando. Há outro me amando, me querendo, me aceitando.
Mas que outro? Quem, como? Porque não há. Não em mim. Não no meu mundo. Porque dentro de mim, fora de mim, ao redor de mim só há você. Só há você e apenas você. Apenas você e sua frieza, sua indiferença, mas ainda assim você. Eu não sei o que fazer, como proceder, mas ainda assim você.
Minha cabeça continua gritando que estamos morrendo.
Mas meu coração lembra que, após toda morte, há renascimento.
E que de cada renascimento vem um vida completamente nova para se viver.
Coloco a caneca sobre a pia de mármore e seguro de repente seu rosto entre minhas mãos. Meus lábios capturam os seus em um gesto rápido, porém profundo. Passo a língua sobre minha boca após sentir o seu gosto e respiro fundo ao sentir o sabor das memórias que construímos juntos. Porém seu rosto continua impassível, como se não tivesse sido afetado. Você apenas abre um sorriso misterioso, que sou incapaz de decifrar, e continua fazendo seu trabalho.
Estamos tão perto e me dói, me dói tanto.
Estamos tão longe e me dói, me dói tanto…
Abro os olhos e posso avistar uma flor desabrochar sobre o vaso em minha janela, anunciando o início da primavera.
Não olho para trás, com medo de ver mais uma vez o seu corpo ausente e apenas um lençol amassado e vazio. Permaneço no mesmo lugar, exausta, morta por dentro, gelada por inteiro.
Não consigo imaginar minha vida sem sua agridoce companhia, sem um dia ao seu lado, mas não há mais jeito. Talvez consertar o que está quebrado seja uma perda de tempo, quando é mais fácil e melhor trocar por outro. Talvez persistir em um amor cinzento seja o mesmo que persistir em um erro, que só cometemos porque não admitimos ao próprio orgulho de que ele estava certo. De que perdemos e que, mais uma vez, nos perdemos.
Por causa do amor. Sempre por causa do amor.
Respiro fundo e decido que já está na hora de partir. Que já está na hora de levantar e partir.
Mas não consigo. Não por fraqueza, não por incompetência, não por covardia… Não; não dessa vez.
Pois, agora, o que me puxa na direção contrária é um cálido braço que faz meu corpo chocar-se de leve contra o dele, fazendo-me arregalar os olhos.
“Não vá”, sussurra em meus ouvidos, como se tivesse lendo meus pensamentos. “Não levante. Tive um pesadelo. Fique aqui. Preciso de você.”
“E se eu realmente precisar ir?”, respondi com a voz trêmula e os olhos inundados de lágrimas cristalizadas.
“O que seria de um dia meu sem você?”, ele responde com a voz suave, delicada como veludo. “É primavera. Fique aqui. Atravessamos o vazio outono e sobrevivemos ao gelado inverno. É primavera. Não há porque ir. Fique aqui”.
Eu fico.
Não respondo com palavras, apenas o abraço.
Eu fico.
Não dou explicação para o meu choro, ele sabe.
Eu fico.
Não digo que ainda o amo, ele sente.
Eu fico.
O amor cinzento pode tornar a ser azul celeste. Pode sim. Sei disso.
Eu fico.
Consertar algo é sempre melhor que trocar.
Eu fico.
Afinal, o que seria de um dia meu sem ele?
Afinal, o que seria de um dia dele sem mim?
E o que seria do mundo sem nós dois juntos?
Eu sempre fico. Sempre.
E esta história recomeça com o amor levantando-se após a longa e árdua batalha dizendo, com todas as letras, para o derrotado orgulho: “Você perdeu. Porque eu… Ah! Eu finalmente me encontrei”.

Inspirado da música “Que Sería?”, de Francisca Valenzuela.

Evelyn Marques
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4 comments / Add your comment below

  1. Nuuu!! Que texto liiiiiiiiiiindo Cu!!! Sério, é difícil falar qual foi a parte dele que mais gostei … todas as frases são tão intensas e tão perfeitas!! Como sempre você mostrou que é uma escritora e tanto!! <3

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