Queria dizer para a minha menina que tudo vai ficar bem. Que de alguma forma, ela vai sair viva e melhor de todos os desafios que aparecerem pelo caminho.
Queria dizer pra ela que esse sorriso e o brilho nesse olhar são os seus maiores tesouros. Que ela deve se agarrar a isso com todas as forças e jamais deixar que ambos se percam de seu rosto.
Queria pedir pra ela nunca esquecer da sua essência. Nunca esquecer que ela é naturalmente alegre, que ama fazer piadas e ver as pessoas rindo por algo que ela disse ou fez, que é aventureira, curiosa, exploradora, carinhosa, sincera e que todo o amor que mora dentro desse peito é tão grande que não cabe nem nesse planeta. Que o amor que vive dentro dela é tão imenso assim que é necessário mais um planeta pra que ela possa derramar-se e espalhar-se por mais espaços (mas que vai ter que se conformar em espalhar-se só por aqui mesmo porque é o que dá pra fazer por enquanto). E que mesmo quando ela se perder dessa essência – o que irá acontecer quando ela largar tudo o de mais belo pra buscar amor dentro dos olhos daqueles que não sabem nem como amar a si mesmos – que ela olhe para si, olhe para esse brilho e esse sorriso e lembre-se de quem ela é.
Porque ela sabe amar e como sabe! Ela já nasceu amando e criando, pronta para pintar com cores e risadas todo esse mundo cinza e sem graça que precisa de histórias e muitas histórias para sorrir. E ela nasceu para escrevê-las.
Que a minha criança saiba que esse corpo foi feito perfeito assim para construir. Porque ela nasceu para construir. E que ela entenda, de uma vez por todas e para sempre, que beleza é tudo o que ela é. Que beleza é tudo o que sai dela.
Ela não precisa de pedaços de ninguém para se construir. Ela já é inteira assim.
Onde quer que essa criança more dentro de mim, que ela saiba que é amada. Muito amada. E que ela pode ficar tranquila pra escrever, pintar, cantar, dançar, explorar e amar sem medo de qualquer bronca ou julgamentos.
Eu estou aqui pra ela. Agora estou aqui.
E eu vou ficar.
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Junho.
É junho.
Faz hoje dez meses desde que eu ri pela primeira vez de uma de suas horríveis piadas e disse sim ao seu convite.
Minha melhor amiga fez um bolo para celebrar nosso décimo terceiro aniversário e diz que me ama, diz que me ama mais do que ama bolo, e eu compreendo o quanto a minha vida tem significado.
Lá fora o outono esqueceu que é outono e o sol se exibe como se fosse a sua estação.
Os olhos do meu cachorro brilham com os raios dourados após dias preso dentro de casa e agora ele anda por essas ruas como se todo esse chão lhe pertencesse. Levanto os olhos para ver os pássaros voando na imensidão de azul como se fosse o início da primavera. As árvores dançam a dança do vento e nesse momento em particular sinto que não há nenhuma dor capaz de me esmagar. Digo oi para os pássaros mesmo sabendo que eles não podem me ouvir, contemplo a grande imensidão de azul e agradeço.
Agradeço por estar viva, por ter toda a sorte de habitar esse corpo capaz de sentir tudo intensamente, agradeço por ter a oportunidade de viver debaixo dessa pele tão sensível, de sentir esse coração, esse coração irrequieto e impulsivo, mas que é meu e só meu para cuidar e proteger, agradeço, agradeço muito por estar aqui.
Eu amo estar aqui.
E eu vou ficar.
É junho.
E estou cansada de pensar.
Você não está mais aqui. Acho que nunca esteve de verdade.
Há tanta vida lá fora, tanta luz, tanto amor, pessoas, bichos, esplendores
Há tanto que esse imenso mundo pode ainda me oferecer, viver
Tanta coisa além das migalhas que você jogou em minha direção para conseguir lidar com sua confusão
E agora já não importa mais se você sentiu aquilo ou não
Porque, sinceramente, você nunca será capaz de responder a essa pergunta de um milhão
Nunca será capaz de responder a uma questão da qual nem você sabe a resposta.
Você nem sabe como se sente em relação a si mesmo ou em relação aos outros ou o que realmente pensa sobre o amor ou a vida e talvez esperar alguma lógica de você
seja o mesmo que esperar um navio retornar ao seu porto mesmo após ter sido engolido pelo mar… Simplesmente não vai acontecer.
É junho.
Não sei onde você está ou se já arranjou outros olhos grandes como caixas capazes de acolher toda a sua confusão, mas já não importa agora.
Porque você não está aqui, mas eu estou. Eu estou aqui de uma forma que você nunca esteve. De uma forma que nenhum homem foi capaz de estar.
Eu me sinto. Eu me pertenço finalmente após passar anos tentando construir casa nos olhos de outras pessoas, após passar toda uma vida ofertando pedaços de mim a qualquer um, esperando que algum deles tivesse a disposição de montar minhas peças e me colocar no lugar.
Eu me pertenço e não vou mais me abandonar.
Eu vou ficar.
É Junho.
O outono esqueceu que é outono. Lá fora, o sol se exibe como se fosse a sua estação.
Espero que você possa encontrar uma cura para o seu coração partido.
Estou tentando fazer o mesmo por aqui.
Espero que você um dia consiga ser feliz.
De verdade.
Eu sei que eu serei.
Eu construí uma casa dentro de meus olhos ela é tudo o que eu sempre quis.
Eu amo estar aqui,
Nessa casa, nessa vida, em mim.
Eu amo estar aqui.
E eu vou ficar.
Sim.
Eu vou ficar…
Uma História Sobre O Medo Em V Atos
I.
O medo tem a cara de um homem.
Não sei descrever seus traços, seus cabelos, sua voz ou seu tamanho.
É apenas um homem.
Medo.
Gênero masculino.
Medo, com seus braços largos que apertam e machucam, com suas mãos que esmagam meus ossos, com seus lábios vermelhos de escárnio, com sua boca suja de sangue.
O meu medo tem a cara de um homem.
II.
Um dia, uma amiga me explicava o que era o amor.
Como era estar apaixonada, como era bom ser tocada, apreciada, amada.
Como era bom não sentir dor.
Eu olhei para ela com curiosidade, como alguém que escuta uma língua nova, uma língua nunca antes detectada pelos ouvidos.
“Entenderei o que é o amor o dia em que eu não sentir medo.”
Disse para o vazio, enquanto ela cantava para si mesma uma canção apaixonada.
III.
Percebi que havia algo estranho quando você andou ao meu lado e eu não senti medo.
Lembro de olhar para nossos pés, lado a lado, e nossos passos pisarem na mesma cadência, na mesma direção.
Não era normal. Eu nunca antes havia deixado os pés de um homem pisarem na mesma cadência que os meus.
Percebi que havia algo estranho quando seus olhos chamaram os meus olhos e eu não senti medo. Lembro de sentir que não era a primeira vez que eles se encaravam.
Não era normal. Eu nunca antes havia encontrado pela primeira vez alguém que eu já conhecia.
Você percebeu que havia algo estranho quando se encontrou no meu olhar e sentiu medo.
Não era normal. Você nunca antes havia permitido se reconhecer dentro dos olhos de uma mulher.
Você então mudou o ritmo de seus pés, seus olhos foram chamar outros olhos, de preferência olhos que não o refletissem.
(É mais fácil assim, não é?)
O seu medo ainda tem o meu rosto.
IV.
Uma música lamentosa ressoa sua melodia no fim da noite.
Diz a letra:
“Você chegou tarde demais para mim, eu cheguei cedo demais para você.”
É isso.
V.
Sinto muita falta de não sentir medo.
Saúde Mental Em Tempos de (Mais) Crise
Muito se tem ouvido nos últimos dias sobre os cuidados que devemos ter com a chegada do novo corona vírus em nosso país. Os jornais na tv e a internet nos passam informações a todo momento sobre como se cuidar, como lavar as mãos corretamente, os diversos apelos para que as pessoas não saiam de casa e novidades em tempo real chegam a todo tempo. O cuidado com a saúde e todas as questões materiais é primordial, entretanto, o cuidado com o nosso emocional também é. E, infelizmente, vejo poucas pessoas e veículos abordarem esse tema tão importante que é a saúde mental em tempos de (mais) crise.
A quarentena vem sendo tratada como algo simples de se fazer e apenas “chato”, não poder trabalhar, não poder sair de casa, não poder encontrar os amigos e ter todas as atividades de lazer com as quais estamos acostumados. Listas de filmes, documentários, livros, séries e novelas rolam aos montes por aí como dicas super válidas para ajudar a atravessar esses dias imprevisíveis que estamos vivendo. Entretanto, pouco se fala sobre pessoas que lutam todos os dias contra a depressão, síndrome do pânico, bipolaridade, alcoolismo, violência e abuso dentro de casa, além de muitos outros transtornos que requerem uma atenção mais do que especial.
Se toda essa situação de pandemia e quarentena está sendo terrível pra você que não precisa lidar com essas questões, imagina pra quem literalmente precisa estar em contato com outras pessoas e estar fora de casa pra sobreviver aos demônios da própria cabeça. Pessoas que precisam do trabalho, dos amigos, de uma vida regulada para não se perderem de vez.
Ficar em casa deveria ser sinônimo de segurança, mas para muita gente não é. Muito pelo contrário. Não é novidade pra ninguém o tanto de família que vive refém de todas essas questões citadas anteriormente e muitos deles sem tratamento. Agora imaginem todo mundo preso no mesmo lugar por tempo indeterminado e vendo todos os dias na tv o mundo fora de controle. É a receita ideal para um desastre também emocional.
Todos estamos abalados com o que está acontecendo, mas tem gente à beira do abismo e que só precisa de uma palavra de carinho. Que precisa de mais amor, de mais atenção, de mais cuidado. Saúde mental é tão importante quanto a saúde física. Jamais subestimem a importância da saúde mental, principalmente nesses tempos. Por isso, eu imploro para que vocês que conhecem pessoas que estão nessa situação que cuidem muito, que mesmo que de longe, por mensagem ou ligação, ofereçam uma palavra amiga, um conforto para seus amigos e parentes que vocês sabem que vivem esse tipo de situação. Às vezes um carinho é suficiente para salvar uma vida. Apoiar o setembro amarelo e militar na internet sobre a importância dos cuidados com a saúde mental é algo muito simples de se fazer. Não seja simples, faça mais, faça o que você puder. A hora de mostrar o quanto você se importa de verdade com seu meio social é agora.
Precisamos nos distrair e tentar atravessar este momento da melhor forma possível, mas não se esqueçam do mais importante: desinfetem tudo com frequência, não saiam de casa, alimentem-se bastante e liguem, façam uma chamada de vídeo, enviem uma mensagem para aquele amigo ou parente que está passando por alguma dificuldade emocional mais grave para dizer que a vida dele importa, que ele é amado e que não está sozinho.
Em tempos de crise e pânico, é cuidando um dos outros e amando uns aos outros que vamos conseguir sobreviver.
Talvez seja uma ótima oportunidade pro ser humano parar de sentir vergonha de demonstrar sentimentos e dizer um “eu te amo”. Vamos tirar boas lições deste momento e sermos os melhores que pudermos ser. Sua demonstração de afeto pode salvar mais uma vida. Não se esqueçam disso.
Fiquem bem!
Uma História Sobre Fantasmas em III Atos.
I.
Graças a você não tenho mais medo de fantasmas.
Quando era criança, fantasmas apareciam em meus sonhos e continuavam ao meu lado mesmo depois de acordada.
Costumava chamar minha mãe no meio da noite em busca de proteção, mas ela dizia para que eu fechasse os olhos e esperasse os fantasmas desaparecerem.
Mas eles nunca desapareciam.
Eles continuavam vindo e vindo até o dia em que decidi não dormir mais à noite.
Fantasmas têm medo da luz. E eu só encontrava a paz quando o sol despontava no horizonte.
As pessoas me julgaram dizendo que eu estava arruinando meu corpo. Mal sabiam elas que apenas estava tentando salvar minha mente.
II.
No primeiro dia em que nos conhecemos, você me pediu que caminhasse em sua direção e eu me vi incapaz de dizer não. Subi uma montanha até você, sem imaginar que aceitar a este pedido custaria toda a minha alma.
Eu subi uma montanha e, quando cheguei ao topo, decidi construir uma casa dentro de seus olhos. Eles me eram familiares e eu não entendia por quê.
(Até hoje não entendo o porquê)
Você me deu boas vindas e eu me senti bem-vinda.
Eu construí uma casa dentro de seus olhos e por um mísero segundo pensei que havia encontrado o lar que sempre procurei.
Mas não demorou para que eu começasse a ver, começasse a ver fantasmas em seus olhos, dentro da casa que eu construí com tanto cuidado.
Foi então que percebi que não era a única que lutava contra fantasmas.
Decidi que poderia salvar você, porque eu, apenas eu sabia muito bem como lutar contra fantasmas ou escapar deles. Eu o avisei, eu abri meus braços e meu coração para que o menino que chora dentro do seu peito pudesse encontrar a saída e construir uma casa dentro de meus olhos.
Dentro de mim você estaria seguro. Tinha certeza disso.
Busquei seu olhar, abri a porta para que escapássemos juntos, entrelacei meus dedos com os seus, mas você não se moveu.
Você não queria achar a saída.
Ao contrário de mim, você nunca teve problemas para dormir.
Ao contrário de mim, o menino que você um dia foi (para mim, o menino que você ainda é) fez amizade com seus fantasmas e prometeu nunca deixá-los.
(Você de fato é um homem fiel)
Foi preciso me partir em mil pedaços para entender que você não queria uma saída, que não precisava de salvação.
Que você não precisava e nem mesmo queria uma casa dentro de meus olhos.
Foi então que percebi que fugi de fantasmas a vida inteira para acabar me apaixonando por um.
III.
No último dia em que nos vimos, você fechou seus olhos para mim. Você fechou para sempre a porta da casa que eu construí com tanto cuidado e negou que um dia tivesse me dado as boas-vindas.
Negou que um dia eu pude viver dentro de seus olhos.
Negou tudo.
Eu tenho dormido à noite desde então.
Graças a você não tenho mais medo de fantasmas.
Não tenho mais medo de nada.
Eu ainda vejo fantasmas em sonhos, ainda os sinto quando acordo. Mas eles não me assustam.
Porque desde o último dia em que nos vimos, nada me assusta mais do que a ideia de ter para sempre o seu fantasma dentro de mim.
Não Mais “E Se?”
Eu parei de sentir medo.
Eu abri a gaiola, saí pro mundo, abri meu peito e respiro mais fundo.
Estou vencendo meu pavor de pessoas, agora piso forte, canto mais alto, agora falo o que penso, não temo os olhares e tampouco me importo com os lamentos.
Agora acredito que sou inteligente (o bastante), que tenho talento (o bastante), sonho e realizo, agora eu sigo, consigo o que quero, o que preciso, o que mereço.
Larguei a necessidade de aprovação, a obsessão em ser amada – por tudo, por todos – agora eu olho no espelho e vejo alguém que vale muito a pena.
Estou buscando perdoar meu pai e recompensar minha mãe – por tudo, por todos – e já não existe nenhuma culpa, pois me vejo como o brilho nos olhos dos outros.
Sobrevivo de arte e de letras porque é o que sou, o que eu respiro, e com isso digo a verdade, a minha verdade, e finalmente não preciso me esconder para evitar sofrer – por tudo, por todos –, pois já entendo quem eu nasci pra ser (não quero nunca mais me esconder).
Entendi o esplendor que há em viver.
E não quero nunca mais viver de “e se?”
Para Minha Pequena Criança.
Me perdoe por tê-la abandonado.
Me perdoe por tê-la deixado por tanto tempo perdida, sozinha, lutando contra fortes demônios com tão pouca idade.
Me perdoe por tê-la abandonado como muitos outros fizeram. Eu sabia que tudo o que você precisava era de alguém que segurasse em sua mão e te puxasse, te levantasse do chão e dissesse que tudo iria ficar bem. Que com amor tudo sempre fica bem. Com amor tudo funciona, tudo segue.
(Talvez por isso você tenha ficado paralisada por todos esses anos!)
Mas eu não te dei amor. Muito pelo contrário. Eu só te dei raiva, desprezo, até ódio às vezes (muitas vezes!). É difícil admitir, mas é preciso. Chega uma hora que é preciso. Acho que esse momento chegou. Para nós duas.
Em minha defesa (se é que há alguma), eu te tratei tão mal porque eu achava que isso era amor. Porque foi isso que me ensinaram como amor: dar esperando receber, se esconder para que outros pudessem aparecer, obedecer para que outros pudessem mandar, me calar para que outros pudessem gritar. Aprendi a oferecer meu corpo como um meio de satisfação para outras pessoas, nunca para mim. Jamais para mim. Porque eu precisava ser uma boa menina. Precisávamos, não é verdade? Sim… precisávamos.
Mas eu não poderia ter deixado isso acontecer. Posso justificar que isso faz parte do crescer, que só sei disso agora, tanto tempo depois que o estrago foi feito, e que todos os longos anos de agressões e desamor foram necessários para chegarmos aqui hoje. Talvez. Não sei. Só sei que queria ter feito diferente. Ou ter tirado a venda dos meus olhos muito antes. Durou tempo demais. Foi quase uma vida inteira. Tanto tempo foi perdido, tanto, tanto! Mas espero que ainda sobre vida para fazer diferente.
Me perdoe por tê-la abandonado, minha pequena criança. Você é a coisa mais importante que eu tenho. É por você que eu vivo, é por você que eu sigo. Porque você merece mais, você merece algo melhor que tudo o que precisou agüentar até hoje.
Pegue em minha mão. Caminhemos juntas. Talvez encontremos ainda alguns obstáculos pelo caminho, alguns tropeços, pequenos momentos de novos abandonos e desamores, mas eu prometo que dessa vez será diferente. Dessa vez eu a defenderei com unhas e dentes. Porque eu aprendi a colocar você em primeiro lugar. Porque eu aprendi a amá-la como você merece. E prometo, com todo este amor que guardo no peito, com todo este amor que pode acalentar o mundo (e acalentará!), que não haverá mais abusos, gritos, desprezo e ódio.
Você está segura. Você está protegida. Você é amada.
E será uma vida diferente a partir de agora.
Isso é uma promessa.
Imagine.
Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que eu gostaria de escrever.
Imagine, apenas imagine, se eu pudesse dizer que sou apaixonada pelo mar, tão apaixonada, que eu evito chegar perto pois tenho medo de deixar tudo para trás, mergulhar nele e me afogar.
Imagine se eu pudesse confessar que todo o meu corpo é estranho para mim, como se meu espírito estivesse no lugar errado, como se ele devesse estar em outro corpo, e por pelo menos um momento não sentir culpa por isso.
Imagine se eu pudesse colocar em palavras como esse corpo estranho treme cada vez que encontra outro corpo estranho e que eu tremo, eu tremo, eu tremo tanto que todo esse terremoto dentro de mim me faz esquecer as palavras de minha própria língua. Imagine como seria bom se eu não fosse julgada por isso. Imagine como seria bom se eu não odiasse a mim mesma por isso.
Imagine, apenas imagine, se eu tivesse talento com as palavras e pudesse moldar todos esses sentimentos ruins em poesia como minha melhor amiga faz. Se eu fosse capaz de usar metáforas, ritmo e imagem para descrever como eu sofro todo dia desde criança por sentir que esse lugar me faz mal.
Mas não consigo.
Eu só consigo dizer que eu sofro todos os dias desde a infância por sentir que esse lugar me faz mal. Sem metáforas. Sem ritmo. Sem imagem. Assim mesmo, de forma clara e sem graça.
Imagine o quão longe eu poderia ir se realmente acreditasse que sou uma borboleta, porque eu me sinto tão próxima a elas que esqueço ser humana. Mas não posso acreditar que sou uma borboleta porque fui ensinada desde tenra idade que sou humana, de carne, osso e sem asas, e que eu devo me convencer disso. (20 anos depois e eu ainda não consigo me convencer disso).
Imagine se eu pudesse admitir todas essas coisas em público, deixando todo o podre ir embora e finalmente deixando de vomitar sentimentos em forma de bile, de sentir meu estômago doer toda a porra do dia, deixando de ter esses pesadelos que sugam toda a energia boa da minha alma e finalmente falando, cantando, gritando, finalmente, finalmente… sendo eu.
Sem vergonha. Apenas um dia na minha vida sem sentir vergonha.
Imagine se eu pudesse viver sem vergonha. Ah, é um pensamento maravilhoso! Mas, ainda assim, apenas um pensamento.
Imagine se eu pudesse escrever todas as coisas que gostaria de escrever.
E pudesse viver o mar.
E pudesse me sentir.
E pudesse me relacionar.
E pudesse ser poesia.
E borboleta.
E pudesse falar.
Sem vergonha.
Simplesmente falar.
Aqui e agora.
Imagine.
Apenas imagine.
São Tempos Difíceis Para Os Sonhadores, Mas…
São tempos difíceis para os sonhadores.
Tudo o que falo, tudo o que digo são palavras em direção a um propósito maior. Não há mais histórias, poesia, sonhos, fantasia. Agora só há espaço para luta, para o sangue, para o grito pela vida!
São tempos difíceis para os sonhadores e aqueles que acreditam num mundo melhor. Se o mundo já foi melhor antes, por que não pode voltar a ser?
Por quanto tempo mais teremos que lutar até que todos os seres humanos se enxerguem como humanos?
É muito cansativo, me sinto exausta… está difícil respirar.
Sinto falta de sonhar. Sinto falta de ver imagens em minha cabeça que falavam de amor, de perdão, de superação. Os personagens que batiam à minha porta e diziam “hey, conte minha história!”. Mas até eles se esconderam e tremem de medo. Ninguém mais quer contar histórias. Agora só o medo reina, a ansiedade, a falta de ar constante, os olhos pesados de tantas palavras envenenadas, de tantas imagens de violência e desespero.
São tempos difíceis para os sonhadores. Mas os sonhos são nossa única arma. Nosso único meio de acabar com a violência, com a opressão, com o ódio que vem disfarçado de justiça. E se há sangue, não é justiça: é vingança.
São tempos difíceis para os sonhadores, mas de alguma maneira estamos aqui.
Se não estivermos, quem estará?
Como Atlas, somos nós que sustentamos o mundo, é por nós que tudo ainda gira, que a semente ainda cresce, que a luz se espalha, que a palavra floresce. Mesmo com as pernas bambas, com as mãos trêmulas, com o coração apertado, estamos aqui. E vamos continuar…
Tenhamos força, sonhadores! Unamos as mãos, os corpos, as palavras, os sonhos!
É tempo de lutar!
Se nós não florescermos, quem florescerá?
Se nós não criarmos, quem criará?
Se nós não sonharmos, quem sonhará?
Quem sonhará, amigos? Quem sonhará…?
E Se?
E se eu parasse de sentir medo?
E se eu abrisse a gaiola, saísse para o mundo, se abrisse meu peito, se respirasse mais fundo?
E se eu vencesse meu pavor de pessoas, se pisasse mais forte, se cantasse mais alto, se falasse o que penso sem temer os olhares, sem me importar com os lamentos?
E se acreditasse que sou inteligente (o bastante), que tenho talento (o bastante), que posso sonhar e realizar, que posso seguir, conseguir o que quero, o que preciso, o que mereço?
E se eu largasse essa necessidade de aprovação, a obsessão em ser amada – por tudo, por todos – e se eu olhasse no espelho e visse alguém que vale a pena?
E se eu pudesse perdoar meu pai, e se eu pudesse recompensar minha mãe -por tudo, por todos -, e se eu pudesse largar essa culpa por nunca conseguir ser o brilho nos olhos dos outros?
E se eu pudesse sobreviver de arte, sobreviver de letras, se pudesse dizer a verdade, a minha verdade, sem precisar me esconder para evitar sofrer – por tudo, por todos -, e se eu pudesse ser quem eu nasci para ser? (Esconder só aumenta o sofrer)
E se eu pudesse finalmente começar a viver?
E se?