Pego minha caneta e meu caderno e tiro o pó que se acumulou nas páginas depois de tanto tempo. Pode um escritor se autodenominar escritor mesmo sem escrever? As ideias e o mundo na cabeça bastam para receber tal título?
Abro o caderno e encaro as páginas em branco. Tenho mil histórias na cabeça, mais mil poemas, mais mil pensamentos que desejo escrever e expressar e são tantos tantos tantos que nem sei por onde começar.
Decido pela história da menina dos olhos de luz e paro na primeira frase. A história parece promissora, pelo menos na minha cabeça, mas será mesmo? Será que vale a pena ser escrita? Será que existe alguém lá fora que vai amar essa menina dos olhos de luz da mesma forma que eu já amo? Será que alguém vai se importar?
“Ninguém hoje em dia lê mais nada!”, a voz de uma pessoa conhecida ressoa em minha mente, provocando-me um certo desânimo. De fato, ninguém mais lê. Passamos pelas redes sociais lendo frases cada vez mais curtas, vídeos cada vez mais rápidos e ficamos horas vendo coisas pequenas e muitas vezes sem conteúdo apenas para “desestressar”. Vejo amigas e conhecidos até mostrando que leem, mas no geral são um tipo de narrativa também rápidas, receitas de bolo que sempre funcionam, que ajudam a acalmar o coração e a mente. Isso não é uma crítica, eu também amo histórias receitas de bolo que acalmam o coração e a mente, inclusive estou lendo um agora (e amando!). É apenas a contestação de um fato. Deveria eu escrever um livro assim também? Questões.
Enquanto reflito, a página continua praticamente em branco. Penso em desistir. Pra quê escrever se ninguém irá ler? A menina dos olhos de luz não é uma história receita de bolo. É densa, é sombria, é reflexiva e era para ser um conto que está prestes a virar uma novela, pois as imagens não param de chegar e eu não consigo parar de imaginar. Eu quero escrever essa história. Quero muito. Mas tão pouco tempo e tão pouco esforço valerão a pena? Se eu transformá-la em vídeo terei mais atenção? Alguém tirará 5 minutos do seu dia para ouvir essa história que eu tenho para contar?
“Você deve oferecer ao leitor algo em troca”, foi o que recomendaram em um dos muitos cursos e lives sobre escrita criativa. “Você deve dar a ele um mundo onde ele possa mergulhar, você deve criar um universo só seu, onde o leitor sentirá a necessidade de habitar esse mundo e reconhecerá a sua marca mesmo de olhos fechados.” Caramba, então todo escritor agora tem que virar Taylor Swift? Respiro profundamente. Estou ferrada. Talvez se eu pudesse me dedicar 100% a esse ofício eu conseguisse criar esse tal universo paralelo, essa tal marca. Mas tenho outras obrigações que ocupam 80% do meu dia, sentar para conseguir escrever é um privilégio. Eu não tenho todo o tempo de Taylor Swift pois não vivo do meu ofício, como ela vive. Eu só sou uma mulher levemente esquizofrênica e que sente a necessidade de transformar os próprios sentimentos em contos de fadas para que a realidade se torne um pouquinho mais cor de rosa. E partir daí saem umas coisas mirabolantes que eu não tinha nem ideia que existiam dentro de mim, como uma história sobre uma boneca de pano, uma alcóolatra e um super-herói que encontram o amor em um lugar sem esperança, uma caixa de madeira pintada em lilás que esconde fantasmas e, agora, uma menina cujo os olhos iluminam qualquer escuridão por onde passa e que tem essa luz ameaçada quando alguém bate à sua porta de madrugada. Um pouco de loucura com uma pitada de magia, é só o que tenho para entregar. Isso basta?
Talvez não baste. E isso me assusta. Gosto de contar histórias, mas gosto também que exista alguém do outro lado para ouvi-las. Para que se forme uma conexão especial entre escritor e leitor, que um dia foi toda a minha razão de viver. E eu sinto muita, muita falta dessa conexão. Sinto muita falta de ser escritora. Sinto muita falta de ser a melhor versão de mim.
O mundo me chama lá fora, mas eu quero muito começar essa história. A menina dos olhos de luz e alguém que bate à sua porta. Eu acredito nessa história, que ainda penso se terá um final triste ou feliz (algumas histórias precisam ter um final triste mas, nem por isso, menos bonito). Será essa história o suficiente? Bastará a este conto (ou novela) não entregar um universo de coisas, mas apenas beleza e, quem sabe, alguns minutos de paz neste mundo tão caótico e violento? Será suficiente se apenas for bonito?
Respiro profundamente mais uma vez. Olho para a página em branco. Talvez isso tudo seja uma perda de tempo. Talvez tentar ser escritor no mundo dos vídeos seja mesmo uma perda de vida, de dinheiro, de sanidade. Penso em parar. Penso em desistir. De novo. Mas não consigo. Minha mão está ansiosa para desenhar letras que formem uma história neste caderno. A imagem da casa da menina dos olhos de luz e de alguém que bate à sua porta continua em minha cabeça. Há uma voz em meu ouvido que diz “conte, você precisa contar essa história. Se não for por você, conte por ela. Pois ela precisa ganhar vida” (já disse que sou levemente esquizofrênica, não julguem).
Então, contrariando toda a paranoia, o medo da rejeição e ansiedade por viver numa época em que histórias como a da menina dos olhos de luz não atraiam uma legião de leitores, eu pouso a ponta da caneta no papel e escrevo: “Era uma vez uma menina que carregava uma radiante luz em seus olhos e iluminava toda e qualquer escuridão por onde passava…”


