[Linhas Invisíveis] Capítulo 5 – É Melhor Você Correr Por Toda a Noite

Helena, Montana. Julho de 2009.
3 da tarde.

— Lois! – disse a voz sussurrante da menina que olhava de um lado para o outro, temendo ser vista por alguém. – Lois, pelo amor de Deus, desce daí!
— Eu preciso dar o fora desse hospício! – disse Lois Morrison, enquanto tentava pular o muro do lugar onde já estava presa há 5 dias. – Preciso ver Noah!
— Como você pretende voltar para Seattle sozinha, sua maluca? – perguntou Taylor, a única pessoa em muito tempo que ela podia chamar de amiga.
— De ônibus, ora! – respondeu Lois, olhando ao redor para ver se alguém se aproximava. – A rodoviária não fica muito longe daqui e eu tenho o suficiente para comprar uma passagem de volta. Não posso passar mais um minuto nesse retiro ridículo, eu vou endoidar!
— Lois, pense bem no que está fazendo. – alertou a menina, olhando em volta mais uma vez. – Você pode prejudicar o sir Michael e o sir Ryan! Já pensou na responsabilidade que cairá sobre eles quando descobrirem que uma jovem fugiu do retiro?
— Isso é problema deles, não meu. – respondeu, dando de ombros. – Se esse programa para jovens cristãos fosse menos insuportável, eu não estaria me arriscando desse jeito para fugir. Eles que inventem algo mais atrativo da próxima vez.
— O programa não é chato, você que é uma maluca! – respondeu a menina, impaciente.
— Maluca é a senhora Anne Morrison que realmente achou que me enfiando uma semana em um retiro cristão ia me ajudar de alguma forma. – retrucou uma amargurada Lois. – Por isso preciso estar com Noah! Ele é o único que me entende e com quem eu posso verdadeiramente contar! Não preciso de Deus quando já tenho Noah comigo.
— Pelo amor de Jesus, você acabou de começar a namorar o cara e não pode ficar uma semana sem ele? Isso é doença, você deveria se tratar!
— Você é minha amiga ou minha inimiga? – Lois perguntou, sentindo-se pessoalmente atacada.
— Eu sou sua amiga e por isso mesmo estou dizendo o que penso! – Taylor respirou fundo, tentando manter o controle para não brigar com a amiga. – Lois, pare com isso, hoje não vai ser tão ruim! Estão dizendo que à noite teremos uma palestra com um convidado especial, um amigo da escola de sir Ryan! Parece que ele já está no acampamento e umas das meninas disse que ele é um gato!
— Não me interessa, eu já tenho um homem pra chamar de meu! – respondeu Lois, ignorando por completo o aviso de Taylor sobre sua obsessão com o novo namorado. – Agora pare de encher o saco e me ajude a pular isso aqui!
— Argh, tudo bem, eu ajudo! Mas só porque quem vai ficar maluca sou eu se passar mais um minuto ouvindo sobre esse tal de Noah! O que eu preciso fazer?

Com a ajuda de Taylor, Lois conseguiu a altura que precisava para se debruçar e então pular o muro. Ralou os joelhos e as mãos na queda, mas não se incomodou com a dor. Só de se ver livre daquele lugar que havia sido sua prisão nos últimos 5 dias, compensava qualquer dor física. Olhando uma última vez para o retiro, temendo que a alguém a visse, Lois atravessou a rua com o sinal aberto, desviando perigosamente dos carros, e correu o mais rápido que conseguiu.
Sabia que o que estava fazendo era uma maluquice e que Anne Morrison jamais a perdoaria por ter feito algo assim. Mas a relação com sua mãe já estava bastante desgastada e uma decepção a mais, uma a menos, não iria fazer a menor diferença.
Assim que se viu segura, longe o suficiente do retiro, Lois abriu a mochila e pegou o mapa da cidade, procurando a rodoviária. Como já havia visto na noite anterior, quando passou a madrugada acordada bolando o seu grande plano de fuga, o local não era muito distante. Precisaria andar mais ou menos uns 30 minutos, mas chegaria sã e salva. E mesmo que não chegasse sã e salva, o importante era chegar, pensou Lois Morrison. Não podia mais passar um minuto longe de Noah, sem saber o que estava fazendo, sem conseguir falar com ele, sem sentir-se calma do jeito que só ele a fazia sentir. Que fosse ao inferno esse retiro ridículo e todas as pessoas que achavam que precisava ser salva de alguma coisa. Ela não precisava de ajuda, não precisava ser encontrada nem por Deus, nem por Jesus, nem por ninguém. Tudo o que precisava era estar com alguém que a fazia se sentir querida de verdade.
Amanhã pela manhã ela já estaria de volta a Seattle e ao lado de Noah, de onde nunca deveria ter saído em primeiro lugar. E pretendia jamais deixá-lo outra vez.

**

Helena, Montana. Julho de 2009.
10 da manhã.

— Brandon Reed? – Brandon parou imediatamente de escrever no notebook e olhou para cima. – Não acredito! O que o garoto mais inteligente de Nova York está fazendo perdido na capital de Montana?
— Ryan Gallagher! – Brandon levantou-se e cumprimentou o amigo que não via desde a época de colégio. – Que surpresa encontrá-lo por aqui! Não nos vemos faz quanto tempo, uns…
— 7 anos! – respondeu prontamente. – Como está seu pai?
— Está bem, trabalhando e publicando como nunca. Sente-se, vamos colocar o papo em dia!

Ryan aceitou a sugestão de Brandon e ambos sentaram-se à mesa. Antes de reiniciarem o assunto, Ryan chamou a garçonete e pediu um café. Brandon salvou o que estava fazendo no notebook e abaixou a tela para que pudessem conversar sem distrações.

— Está morando aqui ou está de passagem, como eu? – perguntou Brandon.
— Moro aqui faz uns 4 anos já. Eu lidero um grupo de jovens cristão que estão um pouco perdidos na vida. Descobri minha missão de vida tentando ajudar a juventude a encontrar um caminho mais limpo para caminhar.
— Poxa, cara, que legal, fico feliz por você! – Brandon sorriu com sinceridade. – É sempre bonito encontrar alguém que encontrou um propósito na vida. Fico feliz.
— Às vezes encontramos nosso verdadeiro caminho onde menos esperamos. Essa é a mágica da vida. – refletiu Ryan. – E você, o que faz aqui?
— Vim para um ciclo de palestras sobre neuropsicologia. Era um evento aberto ao público e decidi me inscrever. – explicou Brandon. – Aproveitei então para conhecer o lugar, nunca antes havia estado em Helena. É tudo muito bonito aqui.
— Ah, então você seguiu mesmo o caminho da psicologia? Sempre soube que você seguiria os passos de seu pai, vocês são parecidos em tudo.
— Bem, não exatamente. – Brandon coçou a nuca, constrangido. – Estudo psicologia por diversão e porque creio que consigo ser um ser humano melhor a partir do momento que me proponho entender o outro. Não entrei em nenhuma faculdade depois que saí da escola.
— Como assim? – Ryan foi tomado por um choque ao ouvir a notícia. Depois de ter convivido com Brandon toda a adolescência, essa era a última informação que esperava escutar. – O cérebro de ouro de uma das mais importantes escolas de Nova York decidiu não ter um curso superior? O que foi que eu perdi?
— Não tem nada demais. – ele sorriu, sem graça. – Eu só escolhi a liberdade de encontrar o conhecimento que preciso além das páginas de um livro e as limitações de uma sala de aula. Explorar é o melhor caminho para o conhecimento.
— Seu pai deve ter surtado com essa notícia… – comentou Ryan, lembrando-se do gentil e intelectual pai de Brandon.
— Bem, vamos dizer que ele não foi um entusiasta dessa decisão. – comentou Brandon, sem detalhar o sermão que levou de Paul Reed antes dele se conformar com a decisão do filho. – Mas no fim ele apoiou, pois entendeu que a melhor maneira de me fazer feliz era me deixar livre para tomar minhas próprias decisões.
— Bem, que bom que tudo deu certo na família Reed, então.
— Sim, acho que deu. – respondeu Brando, sabendo que seu pai o apoiava até mesmo naquilo que não concordava. Ele tinha o melhor pai do mundo e sabia bem disso.

A garçonete chegou com o café de Ryan e Brandon decidiu pedir algo para comer. Enquanto a moça anotava o pedido, Ryan encarou a figura de Brandon por alguns segundos, pensando como o filho de Paul Reed, apesar de não ter seguido um caminho religioso, tinha algo especial dentro de si. Era possível ver o coração de Brandon através de seus olhos e ele se sentia uma pessoa de sorte por ter tido a oportunidade de ter convivido, ainda que por poucos anos, com Brandon e Paul. “Essa família é especial”, ele pensou.
Sentindo uma inspiração repentina, talvez uma inspiração divina, Ryan teve uma ideia que pensou ser vantajosa para ambos.

— Hey, me diga uma coisa… – Ryan retomou a conversa. – Quais são seus planos para os próximos dias?
— Devo voltar para casa depois de amanhã. – respondeu Brandon, pensando por alguns segundos se tinha algo de muito a importante a fazer. – No momento o plano é não fazer planos, estou explorando as possibilidades que essa cidade adorável tem para me oferecer.
— Pô, se você não tiver nada para fazer hoje, o que acha de pintar lá no meu retiro de jovens e dar uma palestra especial para os garotos? Sinto que eles já estão meio entediados com o programa e seria legal trazer gente nova.
— Ryan, eu respeito e admiro demais o que você faz, mas você sabe que eu não sou muito adepto à questões religiosas. – respondeu com toda a cautela que conseguiu. – Igrejas não são pra mim.
— Não, você me entendeu mal! – Ryan tratou rapidamente de explicar. – Você não vai falar de Deus, nem nada disso. O programa é muito mais do que só ler e falar sobre a bíblia, procuramos integrar todos os tipos de conhecimento que podem beneficiar os jovens neste momento tão confuso de suas vidas. Acho que seria uma adição muito especial para o programa trazer alguém com os seus conhecimentos sobre psicologia, eles vão gostar muito de ouvir alguém como você.
— Bem, não sei, sinceramente… – Brandon respondeu, incerto em relação ao convite. Gostava muito de Ryan, mas a verdade é que tinha um pouco de pavor de grupos religiosos. Não conseguia ver como poderia ajudar aquele grupo de pessoas que acreditavam em coisas da qual ele ainda não era capaz de crer.
— De verdade, confie em mim. Ninguém aqui vai tentar te converter. – garantiu Ryan com descontração ao ver a hesitação do amigo. – Eles precisam justamente de algo diferente do que conheceram até agora e acho que você é a pessoa certa para isso. Estou precisando de ajuda com alguns deles, soube pelo meu colega de trabalho, Sir Michael, que uns jovens já têm até problemas de consumo excessivo de álcool mesmo sendo menores de idade. Você tem uma boa lábia, lembro de você falando na hora do intervalo sobre seus conhecimentos e todo mundo prestando em cada palavra que dizia. – recordou. – Acho que suas palavras poderão ter o mesmo efeito no retiro.

Brandon parou um pouco para pensar, sentindo que estava sendo convencido por Ryan.
Quando saiu de Nova York e foi descobrir um outro lado da vida em Phoenix, decidiu que queria se desafiar a fazer algo diferente, algo que jamais faria se seguisse no mesmo lugar onde nasceu e cresceu, com as mesmas pessoas que conhecia desde a infância. Dar uma palestra científica em um retiro para jovens cristãos era a última coisa que pensou em fazer na vida, mas agora a ideia não parecia ser tão ruim. Ele podia sim oferecer alguns conhecimentos sobre transtornos psicológicos e, quem sabe, fazer com que alguém se sentisse compreendido e menos julgado. Paul Reed o havia ensinado muito bem durante a vida e agora ele mesmo buscava outros conhecimentos sobre psicologia em diversas partes do país. Talvez Ryan tivesse razão. Talvez ele tivesse mesmo uma grande bagagem de conhecimentos e podia agora passar isso a quem precisava ouvir. Seria uma experiência no mínimo curiosa e de repente ele sentiu vontade de tentar e ver onde aquela loucura iria dar.

— Tudo bem, eu aceito. – respondeu, para a alegria de Ryan. – Mas com uma condição: não mencione de quem sou filho. Não quero que a fama do meu pai atrapalhe o trabalho que eu possa vir a fazer com eles. Sabe como adolescentes são deslumbrados por pessoas famosas e não quero isso.
— Perfeito, do jeito que quiser! – concordou um animado Ryan. – Podemos ir assim que acabarmos aqui, tudo bem?

Brandon concordou e eles mudaram de assunto enquanto terminavam o café.
Podia não ser a pessoa mais crente do mundo, mas Brandon gostava de observar como o destino tinha sua própria maneira de fazer as coisas. Quando se inscreveu naquele evento de neuropsicologia em Montana, tudo o que desejava era estar entre os mais inteligentes do meio e aproveitar para desfrutar de uma cidade que ainda não havia conhecido. E agora estava ali, conversando com um ex-amigo de colégio com o qual havia perdido o contato, e pronto para passar o dia ao lado de um grupo de jovens cristãos que, quem sabe, poderia se beneficiar de seus aprendizados. Para Brandon Reed, um homem que adorava planejar até os horários de suas refeições diárias, perceber seu caminho tomando um outro rumo era assustador, ainda que também excitante. Sempre que pensava estar no controle, algo maior acontecia que o fazia perceber que, na verdade, o livre arbítrio sobre o qual as religiões amavam falar, não era tão livre assim.
Percebendo-se empurrado para este retiro, sem ter ainda ideia do propósito desse repentino desvio de caminho, Brandon Reed pensou quais surpresas ou quem ele poderia encontrar nesse lugar cheio de esperança.

Sobre “Mulheres Que Correm Com Os Lobos” E Um Relato Pessoal

Sempre acreditei que os livros carregam uma espécie de magia. Eles têm o poder de te transportar para outros mundos, de mudar toda a sua vida em apenas algumas centenas de páginas e também de aparecer no seu caminho na hora certa, quando você mais estava precisando ler o que ele precisava lhe dizer. Penso que nem sempre escolhemos os livros… às vezes, sem que possamos perceber, são eles que escolhem a gente.
O livro “Mulheres Que Correm Com Os Lobos”, da psicóloga e escritora Clarissa Pinkola Estés, há três anos mora na minha estante e, apesar de ter uma vontade enorme de lê-lo, sempre acabava deixando pra depois e depois e depois até que ele passou todo esse tempo lá, intocado.
Desde a virada do ano eu tenho passado por uma profunda transformação emocional. A vida me obrigou a encarar meus piores medos, meus piores traumas para que pudesse sair do meu lugar de vítima e agarrar em minhas mãos minha verdadeira identidade, a me olhar no espelho e entender a mulher que sou e principalmente a mulher que quero ser. Nesse processo de profunda dor e autodescoberta, eu achei lá em janeiro um trecho em um site desse livro que definia perfeitamente o momento pelo qual eu estava passando e entendi que já estava mais do que na hora de encarar essa beleza de quase 600 páginas.
Nunca acreditei em coincidências e vejo o mundo como uma grande conexão, onde nos ligamos a certas pessoas e a certas coisas na hora certa. Mas a minha relação com esse livro foi além de qualquer explicação possível.
Nessa minha fase de “destruir para reconstruir” eu tive esse livro como guia, como se ele tivesse mesmo falando comigo. Ficava chocada como a cada trauma revivido, a cada monstro dentro de mim que eu precisava enfrentar, eu encontrava as respostas a cada capítulo lido. Pude ver todo o meu passado, todo o meu presente e prever o meu futuro a cada página virada. Em 4 meses eu adquiri uma sabedoria e uma compreensão de mim mesma como ser humano e, acima de tudo, como mulher, que não me foi possível em meus 28 anos vividos.
A leitura foi finalizada e eu ainda sigo no processo. Ainda tem muita dor pra curar, muito trauma pra entender e trabalhar, muita coisa pra evoluir. Mas sigo muito mais consciente do que eu quero, do que eu mereço e também amando muito mais o que sou e o que minha dor é capaz de produzir através da arte, da minha arte, essa arte que negligenciei por tanto tempo, mas agora não mais.
Desejo que toda mulher tenha contato com esse livro pelo menos uma vez na vida. Mas que chegue no momento certo, na hora em que você esteja mais precisando, para que ele possa ser apreciado e compreendido como deve ser. Para que ele dialogue com seus dilemas e suas dores. Para que ele ofereça respostas quando nada mais ao seu redor fizer sentido, nem você mesma. Para que ele também seja um caminho para a sua cura.
E como saber qual é o momento certo, quando você estará pronta para desfrutar dessa magia transmutada em palavras? Apenas deixe que ele chegue até você.
Os melhores livros sabem o caminho. Eles sempre sabem.