Meus 9 Trechos Favoritos Do Livro “E Se Obama Fosse Africano”, De Mia Couto.

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Mia Couto é um dos mais importantes escritores de Moçambique. Ele é conhecido pelos seus incríveis romances, contos e poesias. Mas no livro “E Se Obama Fosse Africano”, uma coletânea de palestras que proferiu em diversos lugares do mundo, Mia também se mostra espetacular como um pensador contemporâneo. Suas visões sobre política, desigualdades sociais e raciais, cultura e literatura deixam qualquer leitor, seja este fã ou apenas um novo conhecedor de seu trabalho, maravilhado com as ideias do escritor.
Foi muito difícil escolher apenas nove trechos – uma vez que eu marquei o livro quase todo – mas aqui estão os que, para mim, tiveram mais importância:

1)    “O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades.”

2)    “Estamos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os ‘outros’.”

3)    “Fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a Sida, a droga, o desemprego).”

4)    “A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, ensina-nos a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos sermos verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.”

5)    “A verdade é que nós somos sempre não uma mas várias pessoas e deveria ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir. Todos nós convivemos com diversos eu, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher.”

6)    “Quanto mais pobre é um país maior é a capacidade de se destruir a si mesmo.”

7)    “A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por mais que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu nosso próprio olhar.”

8)    “Tenho escrito repetidamente que o nosso maior inimigo somos nós mesmos. O adversário do nosso progresso esta dentro de cada um de nós, mora na nossa atitude, vive no nosso pensamento.”

9)    “Cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a este fardo de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.”

Bônus: “Um país em que as mulheres só podem ser a sua metade está condenado a ter apenas metade do seu futuro.”

No Próximo Verão.

cliff

É a história mais antiga do mundo.
Mais antiga que a primeira folha da Bíblia escrita.
Mais antiga que a idéia de Odisseu e Penélope na cabeça de Homero.
Mais antiga que a criação da religião entre os homens.
Ela sempre começa da mesma forma:
Um entardecer melancólico.
Um navio afastando-se da terra firme sobre as águas salgadas.
E uma mulher no topo de um penhasco vendo um pedaço – ou quase toda – sua alma desvanecer lentamente, até sumir no horizonte.
É a história mais antiga do mundo.
Mães esperando por seus filhos, jovens esperando por seus noivos, esposas esperando por seus maridos, irmãs esperando por seus irmãos…
Mulheres que jamais voltarão a ser as mesmas.
Mulheres que tiveram suas almas modificadas da pior forma. Não só nesta vida, mas nas futuras também.
É irônico perceber como os mesmos deuses que criaram uma raça tão apegada como a raça humana, são os mesmos deuses que comandam este Universo sob uma lei de desapego da qual nunca irei entender.
E esse paradoxo cruel me faz querer morrer.
É a história mais antiga do mundo.
É a mais antiga porque a guerra nasceu com o homem.
É a mais antiga porque o amor nasceu também.
Então, seja por ódio ou seja por amor, o homem, o marido, o amante, tem sempre motivos para partir.
A mesma cena se repete com o passar dos séculos, através de todas as nações.
Promessas são feitas, lágrimas são derramadas e corações são destruídos.
Desde que o mundo é mundo, nós, mulheres, somos conhecidas pela fragilidade, enquanto os homens são definidos pela força bruta.
Mas eles não sabem… Oh, não! Eles não fazem ideia!
Eles não entendem a energia sobre-humana que toda essa interminável espera nos consome.
Como dói, como desespera, como mata acordar com o espírito inundado de esperanças e ter de ir dormir com o corpo destroçado por mais um dia que parece ter sido completamente em vão.
E eu juro que ainda não aprendi a lidar com um sentimento dessa dimensão.
Essa é mesmo a história mais antiga do mundo.
Um entardecer melancólico.
Um navio afastando-se da terra firme sobre águas salgadas.
E uma mulher no topo de um penhasco vendo um pedaço – ou quase toda – sua alma desvanecer lentamente, até sumir no horizonte.
Essa história irá sempre começar da mesma forma.
E, ironicamente, é sempre assim que ela terminará também

Caixinha de Cristal.

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Se eu pudesse, te guardaria em uma caixinha de cristal.
Te deixaria lá dentro, com todas as coisas que precisas e me limitaria a olhar-te por quanto tempo fosse necessário. Te cuidaria, te vigiaria, te amaria. E você estaria sempre aqui.
Você nem precisava saber. Podia ser uma enorme caixinha de cristal, onde você continuaria vivendo sua vida como sempre fez. Como sempre fez antes de me conhecer. E meu trabalho seria apenas vigiar-te e cuidar-te.
Se você estivesse prestes a tropeçar em alguma pedra, imediatamente a tiraria do caminho, para que você pudesse continuar andando livremente e sem perigos.
Se estivesse distraído o bastante para não ver um carro se aproximando, eu pararia o tempo dentro da caixinha de cristal. O carro pararia e você poderia continuar andando livremente e sem perigos.
Se estivesse enamorado de uma mulher que lhe partiu o coração, eu imediatamente a arrancaria da caixinha de cristal e a mandaria para uma caixa de papelão quente e suja. E se as lágrimas começassem a rolar pelo seu rosto, costuraria seu coração durante a noite, em seu profundo sono, e você acordaria sentindo-se renovado, como se nenhuma dor jamais houvesse atingido o pequeno e frágil músculo do lado esquerdo do peito. Você sabe, eu sou uma boa costureira. E você poderia continuar andando livremente e sem perigos. Eu poderia fazer isso sim. Poderia fazer isso e muitas outras coisas. Se ao menos pudesse ter você por perto. Se ao menos pudesse ter você aqui, dentro de uma caixinha de cristal para sempre.
Porque o efêmero nunca me satisfez. O fugaz nunca me alimentou. E a inconstância sempre foi meu desespero.
Em uma caixinha de cristal você poderia ser livre perto de mim. Nós não precisaríamos tomar caminhos diferentes. Você não precisaria ir para a esquerda, enquanto eu sigo a direita. Você não precisaria ir subindo enquanto minha vida desceria cada vez mais por estar longe de sua presença. Você não precisaria pisar no branco, enquanto eu estaria me afogando no negro.
Em uma caixinha de cristal você estaria aqui. Sempre aqui.
Porque eu sinto. Eu sinto, eu posso ver. O dia em que teremos de seguir caminhos contrários está chegando. O dia em que teremos de alçar nossas mãos em um melancólico adeus e seguirmos direções opostas está cada vez mais próximo.
Eu já estou recuperada. Já estou bem, já estou perfeita. Já tenho (quase) tudo o que eu preciso.
O que você irá fazer comigo? Como irá me manter, sem qualquer outra desculpa que possa ser usada?
Me colocará em uma caixinha de cristal também? Não… eu acho que não. Ou melhor… eu tenho certeza que não.
Por isso, fique em silêncio e viva em minha caixinha de cristal.
Porque talvez um dia eu crie coragem suficiente e entre nessa caixinha.
Porque talvez um dia eu resolva passar pela mesma rua que você, na mesma hora, no mesmo bairro.
Porque talvez um dia eu esteja pronta para olhar-te nos olhos e dizer todos os sentimentos que estão vivendo em cada célula do meu corpo. E que esses sentimentos são todos para você.
Porque talvez um dia, em uma hora qualquer, em um evento inesperado, nós possamos nos reunir outra vez, nos encontrar outra vez e nos amarmos pela primeira vez.
E então viveríamos, finalmente, felizes para sempre, em minha preciosa caixinha de cristal.

Reflexos.

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Me tiraram tudo o que eu tinha de mais bonito. E, agora, não sei lidar com o feio.
Odeio chorar na claridade. Me envergonha. Ver minha própria miséria me incomoda. Sim… me incomoda. Sinto vergonha. Sinto-me fraca. A claridade, a claridade!
Por favor, dê-me um pouco de noite, de lágrimas derramadas debaixo do edredon. Eu simplesmente… não posso me olhar no espelho agora…

(Need, Capítulo 6)