Olympia, Washington.
31 de Dezembro de 1996
Ela era a última da fila.
Os portões fecharam-se atrás de si assim que cruzou a linha de entrada. Mesmo tendo saído de Seattle o mais cedo possível, havia chegado tarde o bastante para ficar no fim de uma fila que deveria ter, no mínimo, uns 40 metros.
O céu estava carregado de nuvens cinzentas que estavam prontas para derrubarem seus pingos gelados de chuva sobre a multidão excitada.
Entretanto, isso não importava. Era a primeira vez que seu escritor favorito fazia uma turnê pelo estado de Washington e não sabia se seria a última.
Alguns com certeza a criticariam por ter viajado tantas horas com sua pequena filha nos braços apenas para conseguir uma assinatura de alguém que nem se lembraria dela depois. Ela mesmo pensara mil vezes se deveria fazê-lo. No fim das contas, decidiu que jamais saberia se não tentasse.
E agora ali estava, esperando. Sua filha de cinco anos reclamava o tempo todo por estar em pé em um lugar desconhecido, mas não ligava. Anne já sacrificara muito em sua vida em nome da pequena Lois, merecia um momento de capricho.
As horas se passavam lentamente. A fã ansiosa checava seu relógio a cada dois minutos, sentido como se o tempo tivesse estagnado apenas para implicar com sua paciência.
Pelo que dizia o panfleto deixado à sua porta quase um mês atrás, o escritor só iria autografar os livros até às seis da tarde, por isso a recomendação era de que todos chegassem o mais cedo possível. O problema é que já eram cinco da tarde e deveria ter, pelo menos, umas cinquenta pessoas à sua frente.
Suas mãos suavam, suas pernas tremiam. Mesmo de longe, já podia ver um pedacinho de seu escritor favorito, que dava bastante atenção e tratava com muito carinho a qualquer fã que se aproximava. Tirava fotos, conversava um pouco e sorria com simpatia até a pessoa ir embora.
Faltava pouco, muito pouco. Anne estava cada vez mais perto e sabia que pela primeira vez iria conseguir realizar o sonho de dizer o quanto Paul Reed havia sido importante em sua vida.
Era agora, tinha que ser.
Ou talvez não.
Mesmo que ainda estivesse um pouco longe, Anne conseguiu ver um homem engravatado se aproximar e dizer algo no ouvido de Paul Reed. E não demorou nem dois minutos para que o escritor se levantasse e pedisse mil desculpas para o restante da fila, pois tinha um voo para pegar e precisava ir embora.
Enquanto ele saía, os assistentes distribuíam alguns marcadores de livros já autografados, mas isso não era o bastante para Anne. Nem um pouco.
Ela não tinha viajado em pleno dia trinta e um para dar com a porta na cara assim. Largou tudo para conversar pelo menos cinco minutinhos com seu ídolo. E entendia que foi avisado para que não se chegasse muito tarde, em função da corrida agenda de fim de ano, mas ela fez o que pôde! E não iria sair dali sem que realizasse seu sonho.
Arrastando a pequena filha, Anne foi falando com cada segurança do local, esperando encontrar alguma solução. A maioria usou de bastante antipatia para lidar com ela, como se fosse uma mulher desmiolada e infantil. Mas, por sorte, um deles pareceu compadecer-se de sua sofrida história.
— Eu lhe peço, senhora… – começou dizendo o homem de cabelos alourados, olhando de um lado para o outro, temendo que alguém estivesse escutando a conversa. – Não espalhe o que eu vou dizer para ninguém! Se souberem que deixei vazar a informação e um monte de fãs aparecerem para atrasá-lo, eu com certeza perderei meu emprego!
— Eu juro, eu prometo que só serei eu e que não tomarei muito tempo dele! – garantiu com a voz suplicante. – Mas, por favor, eu só preciso vê-lo, só preciso fazer com que meu esforço valha a pena!
— Tudo bem… – o segurança respirou fundo e acabou cedendo aos olhos castanhos desesperados. – Ele irá sair pelo estacionamento dois, numa van preta, em frente às docas. Por favor, seja discreta!
— Muito, muito obrigada! – Anne pulou no pescoço do homem e lhe deu um beijo estalado no rosto como agradecimento. – Eu prometo que nunca vou esquecer disso! Que Deus lhe abençoe e um ótimo Ano Novo pro senhor!
— Pra senhora também e espero que consiga realizar seu sonho!
Anne correu o mais rápido que pôde para o estacionamento dois, esperando chegar a tempo. Por sorte, assim que chegou ao local, viu tudo exatamente como o segurança indicou. Um grupo de pessoas movimentava-se pelo lugar, enquanto ela observava tudo de longe, atrás de um médio portão de ferro.
A van parecia esperar o último passageiro, que com certeza era ele.
Ela esperou apenas uns dez minutos até que o momento esperado aconteceu.
Uma porta se abriu e um homem, de estatura média e alguns fios de cabelos brancos já nascendo de suas têmporas, saiu pela porta segurando um menino pela mão, indo em direção à tal van.
O coração disparou instantaneamente no peito, como se tivesse corrido quilômetros de distância. Por um momento, Anne perdeu a fala. Seu sonho estava acontecendo, bem ali na sua frente, diante de seus olhos.
Não podia perder a fala agora! Por mais que estivesse tendo um ataque por dentro, tinha que ter alguma reação para concretizar esse sonho exatamente da forma que planejou. Não tinha vindo de tão longe para travar na hora H.
Era só respirar fundo e falar. Apenas isso.
— Senhor! – Anne finalmente tomou coragem gritou o máximo que pôde, esperando chamar sua atenção. Por sorte, o famoso escritor virou o rosto e a viu por detrás dos portões de ferro com um semblante desesperado na face. – Senhor, por favor! Eu viajei quatro horas de ônibus de Seattle até Olympia apenas para vê-lo! Eu sou uma enorme fã e precisava vir aqui dizer o quanto o senhor me ajudou com seus livros nos momentos difíceis da minha vida! – ela berrava cada palavra, sem importar-se com os olhares trocados pelos seguranças responsáveis pelo local, que provavelmente estariam taxando-a de louca no momento. – Desculpe se me comporto de forma um pouco exagerada, mas eu precisava que o senhor soubesse disso!
Um silêncio profundo irrompeu o local após os berros constrangedores.
Os seguranças se entreolharam mais uma vez, não sabendo se continuavam parados ou se deveria tomar alguma providência em relação àquilo.
Paul Reed olhava diretamente para a mulher, sem qualquer reação decifrável no rosto. Todos ao redor olharam para ele, esperando algum sinal. Tudo estava pronto para sua partida e ele ainda tinha compromissos a cumprir em Nova York antes da virada do ano.
Porém, contrariando todas as expectativas, o aclamado escritor e psicólogo apenas virou o rosto na direção do responsável e falou:
— Abram o portão e deixem-na entrar, por favor.
— Está louco? – seu agente colocou a cabeça para fora da van com cara de pouquíssimos amigos. – Temos que pegar o voo de volta para Nova York daqui a uma hora e já estamos muitíssimo atrasados! Você não pode atender mais ninguém.
— E quem disse isso? – desafiou sutilmente, com sua voz calma e educada. – A mulher viajou horas e ficou esperando até agora, além de ter uma linda menininha como acompanhante. – ele olhou rapidamente para garota e sorriu, mas ela ficou bastante tímida e escondeu-se atrás das pernas da mãe. – Não posso deixá-la ir para casa de mãos vazias.
— Você quem sabe! – retrucou o agente com certa rispidez. – Se não conseguirmos chegar em Nova York à tempo para a virada do ano, você terá de explicar a todos os responsáveis de seus compromissos a razão por haver atrasado!
— Não vejo problema algum nisso. – e virando-se novamente para o responsável pelo espaço, repetiu: – Abram o portão para a senhora, por favor.
Anne Morrison achou que iria ter um ataque do coração quando os portões se abriram.
Agora já não havia nada que a separasse de um dos seus maiores ídolos.
Como uma adolescente impulsiva, tudo o que conseguiu fazer foi correr em sua direção e dar-lhe um abraço carinhoso, demonstrando-lhe o quanto estava agradecida por tudo.
— Nunca pare de escrever, por favor. – disse entre lágrimas após conseguir soltá-lo. – Você salvou minha vida inúmeras vezes com suas palavras. Passei por muitos momentos difíceis e os conselhos do senhor me ajudaram a superar. Muito obrigada por tudo.
— Uau, eu… eu nem sei o que dizer! – Paul Reed ajeitou os óculos no rosto, segurando a emoção. Não esperava esse tipo de declaração, principalmente após o que havia passado nos últimos dois anos. No fim de tudo, ele não estava errado em retomar a carreira, mesmo que sua vida tivesse ido para o túmulo junto com a sua esposa. – Agradeço mesmo por todo o carinho e dedicação!
— Se não estiver pedindo demais… – Anne tirou o seu mais novo livro de dentro da bolsa, junto com uma caneta cheia de tinta. – O senhor poderia me dar um autógrafo? Eu quero guardar essa pequena recordação do nosso encontro para sempre.
— Claro, com todo o prazer! Farei até uma dedicatória, para compensar um pouco todo o sacrifício que a senhora teve de vir até aqui para me ver! Seu nome é…?
— Anne! Com dois enes, por favor. – a mulher sorriu, enquanto esperava Paul Reed assinar o seu livro.
A pouquíssimos metros dali, uma menininha de cabelos castanhos corria e brincava sem parar. Sua mãe estava tão ocupada realizando o seu maior sonho que nem prestava atenção na filha serelepe que ria e brincava consigo mesma.
Um menino emburrado, recostado sobre a van, a observava. De braços cruzados e sem paciência nenhuma para esperar seu pai cumprir mais um compromisso, Brandon Reed a olhava com um certo desdém. Ela parecia ter uma energia grande demais para alguém tranquilo como ele. No fundo, queria ser tão alegre quanto ela, mas a verdade era que não tinha tempo para isso. Não tinha tempo para brincar, gritar e fazer coisas de criança com tantas preocupações em sua cabeça. Era verdade que seu pai parecia bem melhor, comparado ao pesadelo dos últimos dois anos, mas não podia relaxar. Brandon tinha que estar sempre atento, pois um deslize seria o bastante para fazer seu pai voltar ao estado depressivo no qual se afundou após a morte de sua mãe.
Olhando rapidamente para a fã louca de seu pai, ele percebeu como esse encontro havia feito bem pra ele. Conhecia todos os tipos de sorriso de Paul Reed, os falsos e os verdadeiros. E era a primeira vez naquele dia que ele sorria verdadeiramente.
De repente, como se algo ou alguém a tivesse chamado, a menininha parou com as brincadeiras banais e olhou para ele. Era como se tivesse sido atraída por uma luz, uma luz que apenas ela conseguia ver. Uma luz que a deixava confortável, segura, como se perto dele não houvesse perigo. Como um barco perdido que procura pela luz de um farol, a pequena Lois olhou para o garoto, desejando ficar um pouco mais perto dele. O chamaria para brincar, perguntaria se podiam ser amigos. Ela era uma menininha solitária e encontrou nos olhos dele um reflexo de si mesma.
Dez metros dividiam os dois, mas ela o olhava fixamente, como se pudesse ver através de sua alma. Brandon pensou que ela era apenas uma criança muito esquisita, mas seu olhar o intimidou a ponto de forçá-lo a olhar para baixo, a fim de não precisar encará-la mais.
Porém, uma risadinha divertida e passos pesados correndo em sua direção o fizeram levantar a cabeça de novo. E levantou o olhar a tempo de vê-la tropeçar em uma pedra e cair com tudo no chão.
Quando a pequena menina abriu a boca e começou a chorar, Brandon sentiu um aperto no peito. Nada o angustiava mais do que ver alguém chorando, era como se pudesse sentir dentro de si a dor de quem sofria ao seu lado. Era algo mais forte, algo que parecia ter nascido com ele. Mexeu imediatamente suas pernas e foi ao encontro da menina, mesmo sem saber exatamente o quê fazer.
— Onde está doendo? – perguntou com ternura, ajoelhando-se ao seu lado, atraindo os olhos avermelhados e lacrimejantes da garotinha.
— Aqui… – disse com sua pequena voz inocente ao mesmo tempo que apontava para o cotovelo ralado. – Ta “duendu”muito.
— Minha mãe tinha um remédio mágico para passar esse tipo de dor. – comentou, enquanto pegava o cotovelo da menina com cuidado. – Ela dizia que era só assoprar com cuidado que a dor passava. Posso tentar?
A menina apenas assentiu, desejando que toda aquela ardência passasse logo.
Anne Morrison e Paul Reed vieram correndo na direção de ambos assim que Brandon começou a assoprar sobre a pequena ferida da menina.
O remédio mágico não era tão mágico assim, já que a ardência continuava, mas a pequena Lois não pôde evitar em abrir um enorme sorriso para o garoto que cuidava dela com tanta atenção. Queria agradecer-lhe e fez a menção de dar-lhe um beijo no rosto, mas sua mãe rapidamente a pegou no colo e a examinou de cima a baixo, como se ela tivesse sofrido um acidente terrível.
— Você está bem, minha filha? – perguntou Anne com certo desespero, enquanto procurava por mais feridas.
— Não foi nada, senhora, ela apenas tropeçou e, ao apoiar o cotovelo no chão, ralou um pouquinho a pele, mas nem saiu sangue, nem nada. – explicou Brandon, fazendo Anne arregalar os olhos.
— E quem é você?
— Meu filho. – explicou Paul com orgulho. – Um pouco inteligente demais para a sua idade e meio avesso às pessoas. Por isso não lhe apresentei, perdão.
— Avesso? – Anne sorriu de forma singela para o menino, agradecida por ter ajudado sua filha. – Ele não parece tão avesso em relação à Lois.
— Verdade. – Paul deu dois tapinhas no ombro do menino, um pouco surpreso pela sua atitude. – Depois da morte da mãe, Brandon pareceu se isolar das pessoas. E sempre dizia o quanto não gostava e não tinha paciência com crianças. Talvez sua filha seja uma exceção. – ele sorriu para a menina que agora enxugava as lágrimas restantes.
— Desculpe pela bagunça! – pediu Anne, sentindo-se um pouco constrangida. – Minha filha não para quieta, eu vivo tendo que correr atrás dela em todos os lugares. É um verdadeiro espírito livre, não gosta de ficar parada em um lugar só.
— Eu entendo, não se preocupe. – Paul tocou o rosto da menininha, que começou a rir para ele. – Mas não brigue com ela, é apenas uma criança. E uma criança muito especial.
— Como o senhor sabe? – perguntou, surpresa com a convicção em sua voz.
— Instinto. – ele deu de ombros, como se fosse a coisa mais natural do mundo. – Eu tenho um certo dom para entender as pessoas. E esse meu dom me diz que sua filha é apenas isso… especial.
— Ela é sim… – Anne deu um beijo cheio de carinho em sua filha, que a abraçou. – Ela é muito especial mesmo.
— Como é que é?! – a voz berrante saiu da van preta e vinha de seu agente irritadiço. – Paul, você já deu tudo o que sua fã queria, podemos ir agora?
— Tenho que ir, sinto muito. – lamentou-se para Anne.
— Claro, vá! Peço até perdão por ter atrapalhado o senhor! – Anne estendeu-lhe a mão e Paul a apertou com sinceridade. – Muito obrigada por toda a sua atenção. O senhor realmente merece todo o sucesso que conquistou.
— Eu que agradeço por tudo. – Paul pegou Brandon pela mão e sorriu mais uma vez para a mulher. – Feliz Ano Novo para a senhora!
— Para o senhor também, tudo de bom!
Paul e Brandon foram andando até a van, enquanto Anne seguiu parada, querendo aproveitar os últimos da imagem de seu ídolo.
Entretanto, antes de entrar na van, o menino deu uma pequena olhada para trás, desejando ver a menina pela última vez. E sorriu quando ela acenou para ele com toda a efusividade de uma criança de cinco anos.
A porta da van fechou-se abruptamente e Anne sentiu um aperto no coração. Quando a van preta finalmente tomou seu destino, ela se deu conta de que aquele era verdadeiramente o fim.
— Vamos voltar para casa, minha filha. Acabou.
E com mais um beijo no rosto de Lois, ela foi em direção à saída, pronta para tomar o caminho de volta para casa.
Anne Morrison pensava que esse era o fim. Que um ponto final havia sido posto nessa curta e bonita narrativa. Em seu coração havia um sentimento agridoce por saber que esse momento não aconteceria outra vez. Pelo menos era assim que seu raciocínio lógico pensava.
A questão é que o Universo não trabalha com a lógica linear dos seres humanos e essa não seria, nem de longe, a última vez que veria Paul Reed na sua frente. Apesar de terem vidas completamente distintas e morarem em extremos do país, a linha invisível que unia Anne Morrison a Paul Reed havia ficado ainda mais forte a partir deste encontro.
O que parecia o fim, na verdade era apenas o começo.
Mas ela só irá descobrir a grande surpresa que o destino lhe reserva daqui a dezesseis anos…