Seattle, Washington. 1993.
A pequena garota abriu seus olhos no meio da noite.
Tudo era escuro e assustador. Ela não tinha idade suficiente para discernir emoções, ainda não sabia colocar em palavras toda essa avalanche de sensações que circulavam por sua corrente sanguínea. Mal sabia balbuciar palavras, mal sabia quem era ou o quê era a vida.
Mas sabia o que era isso que mais tarde ela aprenderia chamar de medo.
A pequena garota saltou da cama, chorando ainda com a chupeta na boca e foi em busca de um abrigo, um abraço, um corpo para o qual voltar. Usou toda a força que tinha para abrir a porta que estava apenas encostada e gritou o mais alto que pode.
Pedia por ajuda, pedia por carinho, pedia por amor.
Mas ninguém ouvia. Ninguém veio ao seu socorro.
Porque os gritos que vinham debaixo das escadas pareciam ser maiores que os seus. Não entendia o que estava acontecendo, só sabia que a dor em seu peito só aumentava quanto mais eles gritavam, quanto mais vidros eram estilhaçados e o medo dominava o seu pequeno corpo de criança.
A menina gritava gritava e gritava.
Mas os adultos lá embaixo gritavam mais ainda.
Se ela soubesse falar direito, se ela soubesse organizar palavras no pensamento, diria “por favor, me ajudem! Por favor, eu estou aqui! Por favor, me amem! Eu preciso de vocês!”
Mas não conseguia expressar nada disso. Precisava que a ensinassem. Precisava que prestassem atenção nela. Precisava que a pegassem no colo e dissessem que tudo ia ficar bem. Que ela estava protegida e que era amada.
Só que ninguém apareceu.
Mesmo depois que uma porta foi batida e um grito de desespero foi ouvido lá embaixo, ninguém veio.
A pequena menina chorou chorou chorou até cansar.
Ela ficou sentada no corredor, olhando para o nada, esperando que alguém aparecesse e limpasse suas lágrimas.
Mas ninguém veio.
**
Cidade de Nova York, Nova York. 1993.
O pequeno garoto abriu seus olhos no meio da noite. Tudo era escuro e assustador.
Em sua mente, ele ainda podia ouvir o barulho do freio, do vidro, do choque na sua lateral direita e todo o seu mundo girar e girar num estrondo até tudo acabar no mais completo silêncio.
Já tinha idade o suficiente para saber o que era o medo, a dor, a perda.
Já tinha idade o suficiente para saber o que era a morte.
O pequeno garoto não sabia como parar a tremedeira que assomou seu corpo. Levantou-se da cama num salto e foi em busca do único amor que ainda restava, do único corpo que ainda podia chamar de abrigo.
Andou pelo longo corredor até chegar ao quarto de seu pai e bateu na porta.
“Pai?”, chamou, com a voz trêmula e desesperada. “Pai, eu tive um pesadelo.”
Ele esperou um, dois, três minutos.
Nada.
“Pai?”, tentou mais uma vez, mal conseguindo falar com sua voz embargada. “Por favor, pai, eu preciso de você”.
Mas o menino não obteve qualquer resposta.
Desistindo de encontrar o abraço que tanto precisava, o menino voltou ainda com o corpo trêmulo para o quarto. Acendeu as luzes e se enfiou debaixo do edredom, sem saber como fazer toda a tremedeira passar.
Ele chorava baixinho, chorava para si, sabendo que ninguém viria ao seu resgate, sabendo que na vida real não existiam super-heróis e que ninguém poderia salvá-lo da tragédia de sua própria vida.
De alguma forma, ele tinha que conseguir sozinho.
De alguma forma, ele tinha apenas que respirar e esperar passar.
Porque tinha que passar.
Uma hora tinha que passar.
Ele não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que não iria morrer, pois Deus não faria isso com seu pai. Deus não tiraria outra pessoa de sua vida assim, em tão pouco tempo, não depois de tudo.
(Será?)
O pequeno garoto abraçou o próprio corpo e fez uma prece para o invisível, implorando para continuar vivo, implorando para conseguir controlar esse corpo que ainda lhe parecia tão estranho, para conseguir sobreviver às lembranças que nunca mais iriam sair de sua memória.
Com o passar das horas, acabou adormecendo.
Sonhou que o super-homem entrava pela janela do quarto do seu pai, o segurava no colo, colocava a mão sobre o seu peito e então, magicamente, a figura magra e apática de seu pai se transformava num homem forte e cheio de brilho no olhar outra vez. Ele sorria e abraçava o herói, agradecendo por ter salvado sua vida.
E foi isso. Apenas uma imagem, apenas um sonho que mudaria para sempre não apenas a vida dos dois homens daquela casa, mas também a vida de todos que futuramente iriam cruzar seu caminho.
Quando o pequeno garoto abriu seus olhos no início daquela manhã de outono, ele já sabia exatamente o que precisava fazer.