Do Outro Lado Do Muro.

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– Olha lá, Júlio! Aquele ali não é o Almeida?
– Onde? – a mão enrugada largou a peça de xadrez para focar no dedo apontado do amigo. – Caramba, José, parece mesmo!
– Parece nada, é ele! O que será que faz aqui? Ele não tinha recebido alta?
– Ih, surtou de novo! Só pode!
– Ei, Almeida! – chamou e assoviou. – Vem pra cá!

Almeida lançou um olhar para a enfermeira num questionamento silencioso que foi respondido com um sinal positivo.
O velho aproximou-se da mesa e recebeu o abraço dos antigos amigos.
Perguntado sobre qual razão o havia trazido de volta ao hospício, ele respondeu:

– Fingi um acesso de loucura. – os amigos o olharam com surpresa. – Não foi difícil, toda a experiência neste lugar tornou tudo muito simples de ser feito.
– Mas o sonho de todo mundo aqui é retornar para a vida do outro lado do muro. O que te fez querer voltar? – perguntou José.
– Segurança. – Almeida sentou-se frente à mesa e mexeu uma das peças de xadrez, aplicando um impensado cheque-mate. – Vocês são felizes aqui e não sabem! Acreditem: o mundo lá fora está uma loucura!

Sobre Um Pedido, Um Toque E Um Chaveiro.

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Eu o sinto andando atrás de mim.
Seus passos, seu cheiro, o jeito como seu chaveiro faz barulho pendurado na mochila.
Eu afasto minha mão do corpo, esperando que você a pegue.
Por favor, pegue-a.
Leve-me contigo por qualquer estrada.
Leve-me contigo mesmo que isto não leve a nada.
Só não a deixe pendurada.
Só não a deixe como uma peça do corpo desgarrada.
Já tenho espaços vazios suficientes. Não preciso de mais um.
Pegue-a nem que seja por pena, nem que seja apenas para levá-la até a esquina enquanto a minha palma beija a sua palma, enquanto nossas matérias se misturam.
Você pode salvar a minha vida com apenas um toque.
Já sentiu como se toda a sua vida dependesse de uma única coisa?
Eu já.
A todo tempo.
Minha mão permanece pendurada ao lado do meu corpo. Seus passos se aproximam cada vez mais.
Por favor.
Por favor.
Por favor.
Prometo não cobrar nada.
Prometo não cobrar sequer a pétala de uma flor.
Só me faça existir entrelaçando seus dedos bem aqui.
Seus passos chegam, mas seu toque não. Você passa por mim e então através de mim.
Vejo suas costas, sinto o seu cheiro e ouço o barulho de seu chaveiro pendurado na mochila.
Minha mão ainda está afastada do corpo, esperando que a você a pegue.

Pergunta Cretina.

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— Olá, Melissa! Como você está?

Engasgo. Pergunta cretina.
Mentir ou contar a verdade?
Hmm… Vejamos.
Odeio o meu emprego. Deveria estar criando algo, não entregando papéis, cafés e canapés para um patrão metido a besta que nem é capaz de me dar bom dia.
Minhas telas estão escondidas atrás da cama apenas para as aranhas verem enquanto não descubro a utilidade delas.
Já acordo cansada, não tenho ânimo para nada e não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida.
Tenho quase 26 anos e ainda não fiz qualquer coisa que desse orgulho a mim e à minha família.
Não tenho mais paciência para flertes, para me encantar com alguém que vai me prometer o mundo num dia e me deixar vazia no outro.
Procuro ver sentido nas pequenas coisas e às vezes adianta… Mas outras vezes me parece impossível respirar.
Suspiro.
Minto ou conto a verdade?
Clarissa é uma ótima pessoa, porém é apenas conhecida. Amiga de infância, nos afastamos, sabe como é. Não perguntou como estou querendo verdadeiramente saber como estou – do contrário teria perguntado como me sinto nesse exato momento ou algo do tipo. Ninguém faz essa pergunta desejando receber uma resposta completa e verídica, a não ser um amigo íntimo que traz seu ombro, um banquinho e muita paciência para escutar suas lamúrias. Ou alguém que cobra 150 reais por hora.
Fazem esta pergunta devido à famosa “educação”, mas de vez em quando desejo que as pessoas sejam mal educadas nesse sentido, pois ando com muita vontade de afogar alguém com a tsunami de meus problemas cada vez que essa pergunta me é dirigida. E me calo, pensando que é apenas perda de tempo e que nunca vai valer a pena.
Seria essa vez diferente?
Olho Clarissa nos olhos.
Sorrio.
Minto ou digo a verdade?
Minto ou digo a verdade?
Eu não estou bem. Eu juro.

— Eu estou ótima! E você?

Sobre Segundas e Sextas.

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Now you only bring me black roses
And they crumble in the dust when they’re held
Now you only bring me black roses
Under your spell

Você me pede por palavras, mas eu não tenho nada a dizer. Tento enterrar suas ações em um caixão três metros abaixo da terra, mas você sempre chega com uma pá e joga tudo pra cima outra vez. Me encontro suja e cega, sem saber como tirar tanto peso sobre mim.
Você diz que me ama, que me ama, que me ama demais. Mas quando as luzes se apagam e a plateia se vai, só o que você faz, só o que você faz, só o que você faz é me deixar para trás.
Você diz que é o meu tudo, mas sob o seu feitiço sempre me encontro vazia, com nada. Por sua causa vivi toda uma vida frustrada e desperdiçada.
Você sempre diz que o mundo está contra você, mas eu sempre estive ao seu lado, erguendo-o, carregando-o sobre minhas costas, empurrando-o para frente. Mas você só sabe dar meia voltar e retornar, retornar e retornar para aquele mesmo bar. A bebida já destruiu seus olhos, aniquilou seu coração e transformou o seu sangue em uma espuma amarelada. “É para os momentos tristes”, você diz em uma segunda. “É para os momentos felizes”, você diz numa sexta. Em seu humor bipolar, só existem os extremos, só existem as segundas e as sextas. E toda a minha vida ao seu lado é resumida em segundas e sextas.
Por muito tempo me senti culpada por cada palavra dita, por cada chamada não atendida. Em uma frase bonita ou em uma rara e única ação bem sucedida, eu me cortava por dentro e me perguntava se todas as memórias, se todas as histórias presentes em minha cabeça que aparecem cada vez que o meu olhar cruza com o seu não eram invenções de uma criança abandonada, que tenta preencher com bonecos e rabiscos os vazios deixados pelos passos de outras pessoas. Sempre fui boa em contar histórias e diariamente me pergunto se não fiz de suas ações uma ficção que justificasse as lacunas dentro de mim. Mas então você liga, briga, religa e desliga toda a esperança de uma ficção. Você é mesmo real e toda a minha ilusão se esvai.
(Why’d you only call me when you’re high?)
Você me chama de astuta, de manipuladora cruel. Mas porque sou eu quem me sinto com cordas de nylon sobre meus braços, em minhas pernas, dentro de minha mente, cada vez que as lágrimas em seus olhos se fazem presente? Por que você insiste que sua dor é assim tão permanente?
Eu o perdoei até nas vezes em que eu fui obrigada a pedir perdão pelos seus erros. Você nunca foi fã de espelhos e nunca, nunca, nunca conseguiu ver o reflexo das pedras que deixa para trás. Mais um dia passa, mais um dia eu tento, ponho a mesa, jogo as cartas, tento fazê-lo discernir o bem do mal, o rei de ouro do rei de paus, mas você cisma em dizer que é tudo igual e joga a mesa para cima, deixando sobre mim uma bagunça abissal.
Agora a porta está fechada, a janela está cerrada e você continua apontando o dedo, dizendo que por sua dor sou culpada. Já se passaram duas décadas e continuamos decaindo, medindo nossas ações através de frias réguas, e nem por dois dias sequer dura nossa trégua.
Você diz que é a personificação da paciência, mas quando o lembro de todos os momentos de violência, seu olhar desaba sobre mim com desdém e seus lábios respondem um “você mereceu.” Eu mereci? Mereci o quê? Mereci por quê? Por sempre tentar salvar você?
Tudo o que eu sempre quis foi apenas um pedido de desculpas, um reconhecimento sincero e duradouro de suas falhas. Sua voz me pediu por palavras, mas quem precisa dizê-las é você. Será que um dia irá acontecer?
O mundo gira, os dias passam e de repente o telefone toca, toca, e toca sem parar. Seu nome aparece, mordo os lábios, olho a data no calendário e nem penso em atender.
É sexta feira.

Um Pouco De Magia.

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O mundo pode ser cheio de magia se passarmos a vê-lo sob outro ponto de vista. E não falo de pós mágicos ou palavras em latim que fazem os objetos se mexerem de acordo com a nossa vontade. Falo do Universo e de toda mágica que o rege. A mágica que está tapada pela grande nuvem negra e suja, que os próprios seres humanos constroem com sua inteligência mal aplicada.
De um lado pode estar o dinheiro, o interesse, a maldade, a traição, o sexo superficial e outras coisas que cegam nossa alma. Mas há o outro lado também. O lado onde você tem sempre uma ajuda. Os amigos estão aí, como fadas madrinhas confortadoras, parecidas com as dos contos de fada. Você pode buscar consolo também no sorriso sincero de uma criança ou num carinho genuíno de um pequeno animal.
A magia também está na troca daquele olhar especial, com aquela pessoa que causa reviravoltas em seu estômago.
A magia está por toda a parte, até no ar em que você respira. Algo invisível, mas que o mantém vivo por tempo indeterminado. Você não vê, pois a nuvem negra ainda cega todos nós, espalhando seus frocos de tristeza e decepção por onde passam.
Talvez devêssemos olhar através dessa espessa nuvem com mais frequência, para podermos cultivar aquilo que realmente importa. Se começarmos, cada um, a fazer nossa parte, talvez a utopia de um mundo melhor e curado possa se tornar realidade.

(Trecho do livro Need – Capítulo 8)

Detalhes.

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Passei a amá-lo nos detalhes.
Como quando sorri e provoca pequenas ruguinhas debaixo de seus olhos. Ou quando franze o nariz ao sorrir, tentando sair de um clima de desconforto.
Passei a amá-lo quando notei as sardas quase imperceptíveis em uma linha que começa um pouco abaixo do olho direito, passa sutilmente pelo nariz, para terminar um pouco abaixo do olho esquerdo. Levei algum tempo para notar. São tão fraquinhas que só é possível percebê-las com o sol ou com alguma luz muito forte batendo diretamente em seu rosto. É preciso prestar bastante atenção para vê-las. E ultimamente não tenho feito outra coisa.
Seus olhos não chamam atenção por serem azuis, verdes ou qualquer outra cor que apenas uma mínima porcentagem da população mundial possua. Seus olhos são castanhos, simples, como os da maioria. Mas têm o poder de te arrastar para dentro deles sem que você tenha qualquer direito a uma escolha. Ele fala e você mal presta atenção, desejando ver o seu próprio reflexo morando para sempre naquele mar castanho. E por observá-los tão atentamente, posso jurar que eles mudam de cor quando ele está animado em relação a alguma coisa. Ficam mais claros, como se uma luz invisível acendesse detrás de sua íris. Por esse motivo, tento fazê-lo sorrir sempre que posso. Porque nada é mais inebriante do que ver a cor dos olhos do homem amado mudarem por sua causa.
E sua voz… Ah! Sua voz é como Nocturno Opus N°2 de Chopin deslizando por meus ouvidos. É suave. Me passa uma sensação de tranquilidade tão forte que apenas desejo fechar os olhos e sentir minha alma ser carregada por aquele som. Porém não é sempre assim. Quando ele está com raiva e transtornado, as palavras arranham em sua garganta. É como o rosnado de um cachorro que faz de tudo para defender o seu território. É áspero e amedrontador.
O cabelo liso – da exata cor e tonalidade de seus olhos – cai sobre a testa numa modesta franja, que não passa um milímetro sequer de suas sobrancelhas grossas. Se ele soubesse o quanto me enlouquece ver seus dedos bagunçando aqueles fios castanhos quando está cansado, com certeza não o faria com tanta frequência.
Ele não se envergonha muito facilmente, mas, quando acontece, sinto meu coração encolher quando o vejo afundar ambas as mãos no bolso e encarar o chão. Depois do momento constrangedor, ele olha cautelosamente para cima e observa se já está livre daquela sensação desagradável e corrosiva. Ao sentir-se seguro outra vez, seus lábios desenham um sorriso torto. Suas mãos colocam graciosamente os óculos escuros sobre o rosto e torna a andar com a mesma confiança e beleza de sempre.
Ele é como um vício do qual você não consegue largar. Abre um buraco em mim quando se afasta ou se penso que posso perdê-lo a qualquer instante. Ele é pior do que chocolate, heroína ou café. Porque não existe nenhum exame ou pesquisa que comprove o quanto uma única dose de seu beijo pode levá-la à dependência e, consequentemente, ao delírio.
Passei a amá-lo nos detalhes e o detalhe é que ele não faz ideia do que provoca em mim.

Sobre Mortes, Sonhos e Realidades.

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Eu me lembro de tudo.
Lembro dos furinhos microscópicos de sua camisa pólo branca.
Lembro do seu cheiro que emanava dos furinhos microscópicos de sua camisa pólo branca.
Lembro de sua pele morena.
Lembro de seus braços envolvendo meu corpo nesta cama, afastando toda a dor existencial dentro de mim.
Lembro da sensação de abrigo que sentia na larga extensão deles, como se o mundo lá fora jamais pudesse me atingir.
Você estava ali.
Você era real… Mas não era!
Meu cérebro está brincando comigo?
Você partiu, você se foi!
Não há mais a pele morena, não há mais o abrigo!
Não há mais seu corpo, mas ainda há você!
Não há?
Tem de haver!
Estico meus braços na direção do vento, esperando sentir seu cheiro ou tocar seu rosto através do ar.
Mas acordada é em vão.
Você nunca está.
Nossa imagem vai desaparecendo como a luz fraca de uma vela prestes a se extinguir.
Sua memória é como o fogo: vai apagando, morrendo, até não mais existir.
Mas é só fechar os olhos à noite e você está ali.
Diga, como pode não mais existir?
Você está comigo, eu sinto, eu sei.
Mas eu acordo… Então não sei!
E passo o dia com uma interminável sensação de vazio, com a revolta por acordar e seu corpo desaparecer.
Meu cérebro está mesmo brincando comigo?
Porque ao despertar de seu sonho, eu não sei mais o que fazer.

Sem Palavras.

sem pa

Olho em sua direção. Ela não me vê.
Está mergulhada no novo caso que chegou às suas mãos. Reparo como não presta atenção em nada além de seu trabalho, dos papéis jogados sobre a mesa. Escreve, rabisca, sublinha… Anota cada detalhe, cada linha que julga ser importante. A paixão salta de seus dedos. Poucas vezes vi alguém dedicada, tão apaixonada. Pergunto-me como pode deixar sua vida escapar de seu controle para dedicar-se inteiramente a um marido que nunca lhe deu valor.
Continuo observando-a sem que me veja e um arrepio sobe por minha espinha. Corre pelos braços e em seguida desce para as minhas pernas, até me tomar por inteiro.
Ajeito-me na cadeira, fecho o botão do paletó. Respiro fundo e penso se ela não está reparando em meu desconforto. Pode parecer loucura, pois ela nem está olhado. Parece que nem estou presente na sala. Continua afogada nos papéis. Ainda assim, pergunto-me se não estaria apenas disfarçando para não ter de falarmos sobre a tensão que permeia nossos encontros nos últimos meses.
Ângela é muito perceptiva e quando seu olhar captura o meu sinto-me como se estivesse nu à sua frente. Como se pudesse decifrar cada movimento, cada traço de meus pensamentos. E estes são todos para ela. Todos, todos por ela. Mesmo evitando conversar sobre o assunto, sei que tem pleno conhecimento do que eu sinto pela sua pessoa, pela sua alma.
Cruzo minhas mãos sobre o colo e abaixo os olhos. Tenho de fazer um esforço sobre-humano para mantê-las quietas. A esquerda está louca para tocar sua mão apoiada sobre a mesa e a direita mal pode esperar para adentrar seus cabelos negros e lisos para atrair seus rosto até o meu. E meus lábios… Ah! Esses estão aflitos! Tenho que mordê-los por um instante, a fim de conter o enorme desejo que se apoderou deles.
Engulo em seco e me pergunto se ela não está sentindo o mesmo. Se não está sentindo uma mínima vontade sequer de tocar a minha pele, de fazer uma carícia silenciosa e inocente que não prejudicará ninguém. Ninguém além de meu coração apaixonado.
Quero falar. Quero colocar pra fora de uma vez todas essas sensações guardadas com muito cuidado dentro de meu peito há dez anos. Quero implorar para que largue o marido de uma vez por todas e que dê uma chance para continuar o que começamos nos tempos de faculdade. Quero deixar bem claro o quanto estou disposto a sacrificar minha vida, se for necessário, apenas para fazê-la feliz.
Mas me calo. Como sempre.
Por respeito a ela. Pelo meu orgulho.
Pelo seu quase ex-marido. Pelos seus filhos.
Por uma infinidade de motivos que parecem crescer a cada dia de silêncio.
Me calo e continuo fingindo que tudo está bem. Que os olhares trocados são apenas de dois colegas de trabalho. Que nossas conversas sobre filosofia e vida são apenas palavras divididas por duas pessoas que se conhecem há mais de dez anos. Finjo que poderemos ser apenas isso: amigos. Amigos até o fim de nossas vidas.
Talvez um dia aconteça. Talvez um dia eu mereça ser o dono de seu sorriso, o alvo de seu olhar misterioso e profundo ou o colo de suas dores e aflições. Talvez um dia eu apareça na janela de sua casa, bêbado, com o propósito de explicar que tudo o que vivemos no passado ainda se faz presente dentro de mim. Talvez um dia eu pare o elevador ou cause uma pane na eletricidade apenas para dizer que ela é a mulher da minha vida. Que sempre soube disso desde o primeiro dia que a vi.
Mas não consigo. Não posso. Não devo.
Enquanto isso, enquanto nenhuma atitude era tomada e nenhuma palavra era dita, nossos encontros diários terminariam sempre da mesma forma: fingíamos que nada acontecia, trocávamos um último sorriso furtivo e nos afastávamos da mesma forma com que nos aproximamos pela primeira vez, dez anos atrás: Sem palavras.

Sobre Álbuns, Algos e Superações.

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Achei a caixa com fotografias, objetos e todas as coisas que fizeram parte da nossa história. Pensei instantaneamente em jogar tudo fora, queimar, livrar-me de qualquer resquício de um passado ilusório.
Não consegui.
Não naquele momento, não ali.
E ao invés de atirar tudo no lixo, o nosso velho álbum de fotos eu abri.
Imagens jogaram-se contra o meu rosto. Todos os sorrisos, todas as gargalhadas, as guerrinhas de almofadas às 3 da madrugada… Tudo compactado, apertado em um álbum de retratos.
Quando você se foi, eu desesperei. Perdi todo o controle e fui aquele tipo de mulher que sempre critiquei. Quem me vê hoje tão centrada, tão sana, tão risonha e agitada, mal pode imaginar que quase morri por um amor ferido. Que quase morri por um amor suicida.
É difícil de lembrar, difícil de aceitar, mas a verdade é que eu enlouqueci.
Olhando para trás, vendo um filme de sua partida em minha mente, eu não posso denominar de outra forma: foi loucura pura e obsessiva. Não sei se é possível pessoas normais ficarem momentaneamente loucas, esquizofrênicas, mas acho que foi exatamente o que aconteceu comigo. Ninguém nunca vai entender o que fui naquela época. Nem eu mesma algum dia vou entender o que fui, quem me tornei, quem ou o quê incorporei há cinco anos.
Não sei se há justificativas. Amor se mede, loucura se explica?
Seria um passado de perdas e derrotas constantes?
Seria essa sensação de desamparo que me acompanha injustamente desde o dia em que nasci?
Não sei, não sei explicar, não sei definir.
Eu fui apenas algo que você deixou para trás e por algum motivo eu acreditei nisso. Acreditei que eu era assim: só ‘algo’, uma coisa, um objeto que é largado, pois é matéria bruta, descartável. Não fui mulher, não fui filha, não fui gente; fui apenas algo, enquanto você era tudo. E esse foi meu desespero.
Não sei, não sei mesmo. Aqui me encontro, julgando minhas injustificáveis atitudes, criando um paradoxo ao explicar nessas linhas o fato do meu descontrole não ter explicação.
Eu apenas fui algo.
Sem nome, sem lugar, sem definição.
Apenas fui.
E, graças a Deus, não sou mais.

Continuo passando as folhas do álbum, vendo fotos, vendo momentos que foram congelados em variados centímetros de altura e largura. Momentos que significaram uma vida e cabem numa moldura retangular. Fomos gravados no tempo, sem permissão de apagar o que já foi vivido.
Você existiu e eu também. E durante alguns anos deixamos rastros, provas de que existimos juntos.
A felicidade já retornou ao meu ser. Já sou gente outra vez, com vontades, desejos, sonhos… Voltei a ser filha, a ser mulher, a ser amante. Sou alguém diferente, alguém que existe como gente, de matéria viva e pulsante.
Alguém que consegue existir com facilidade fora de sua presença.
Talvez esse tenha sido meu problema: tentei inserir-me em seu corpo por osmose e quis fazer parte de seu organismo para sempre. Mas aos seus olhos eu era apenas uma virose; algo que causa apenas um incômodo e passa.
Enquanto continuava a insistir, você queria apenas fugir dali. Vislumbrei o fim e fechei os olhos; recusei-me a partir.  Achava que podia morar dentro de você.
Mas é impossível, é inadmissível.
A física é mais exata que o amor; dois corpos não ocupam o mesmo espaço e é isso… Acabou!

A última folha do álbum desliza pelos dedos e um suspiro escapa dos meus lábios enquanto a contra-capa é fechada.
Sorrio.
Nada é melhor do que a sensação de algo superado.
Nada é melhor do que se ver inteira, após tanto tempo despedaçada. De sentir o controle de volta à suas mãos, de volta ao coração.
Não jogo o álbum fora. Ele precisa ficar. Precisa ficar e me lembrar, em todos os momentos de queda, de loucura, de esquizofrenia, que eu sempre posso superar.
O que era meu ponto fraco, agora virou meu poder. Se agora aqui estou, nada mais pode me deter.
O mundo girou e a loucura me largou.
Trocamos de lugar e isso é quase impossível de acreditar.
Sou forte, sou única, sou gente.
Sou filha, sou mulher, sou amante.
E você é apenas algo dentro de um álbum de fotos em minha estante.

Madness.

 

mad

— Eu fiquei louco?
— Eu temo que sim. Você está totalmente pirado. Mas eu vou lhe contar um segredo… As melhores pessoas são loucas.

– Alice no País das Maravilhas.

 

 

— Eu te amo. – ela disse bem baixinho, quase como um sussurro.

Meus olhos se abriram repentinamente, tomados pelo susto.
Mila havia dito a frase de três letras no momento em que eu menos poderia esperar. De forma simples. Tão simples e tão baixinho que cheguei a indagar se não havia sido apenas um devaneio de minha mente esperançosa.
Imaginei mil momentos. Mil ocasiões, lugares diferentes, circunstâncias singulares… Imaginei pequenos filmes na minha cabeça, com uma perfeição que jamais acreditei que a realidade pudesse superar.
Eu estava enganado.
Porque as melhores coisas, as mais belas sensações ocorrem quando menos esperamos. Quando não há um planejamento calculado em uma folha de papel.
E vendo minha pequena fada adormecer ao meu lado, recordei, nostalgicamente, como tudo começou…

XX

Era quinze de novembro.
Belgrado estava sendo atingida por uma chuva torrencial que não havia sido antevista pela previsão do tempo.
Pessoas corriam de um lado para o outro nas ruas, caçando marquises ou qualquer outro lugar onde pudessem se proteger. Fugiam dos pingos gelados como se fossem mortais. Pareciam ser capazes de derreter sua pele, tamanho era o desespero de gente que passava apressadamente por mim, a maioria mulheres.
Andava sem rumo.
Deixava que a chuva fizesse seu trabalho pacificamente, sem me preocupar com resfriados, gripes ou pneumonias que sempre eram previstas nessas situações. Escutava meus próprios pés fazerem um barulhinho engraçado sobre a água.
Splish, Splash.
Era a onomatopéia da felicidade. Pelo menos pra mim.
Meus vinte e dois anos pareciam desvanecer-se no calendário assim que sentia a sensação da chuva de encontro à minha pele. Comportava-me como um garotinho imprudente que pulava e pisava nas poças d’água, sem me preocupar com o estado imundo em que minhas meias ficariam após o episódio de diversão.
No meio de minha distração infantil, não escutei o sino da porta de uma livraria ser aberta.
E tampouco vi o pequeno corpo que saiu calmamente de lá, para se chocar com o meu.

— Ai! – exclamou uma voz que ia de encontro à parede na saída da livraria. Suas bolsas voaram e caíram diretamente sobre as poças d’água na calçada ao largá-las para se escorar e evitar um acidente maior.

Imediatamente peguei as sacolas e tentei salvar os pares de livros que haviam em cada uma.
Levantei o rosto para me desculpar, mas as palavras fugiram de meu cérebro, da minha boca, de minha língua. Pareceram ter mergulhado na poça também, pois eu não conseguia encontrá-las de jeito nenhum. Haviam se perdido.
A mulher ruiva vestia uma boina lilás na cabeça que deixava sua franja perfeitamente reta em sua testa. Usava uma maquiagem leve, quase imperceptível.
Um casaco cinza a protegia do frio, junto com uma calça preta e botas da mesma cor. Algo em sua áurea gritava singularidade. Mesmo sem conhecê-la, sem saber sequer o seu nome, notava-se que ela não era como as outras pessoas. Não era como ninguém que já tive o prazer de conhecer antes. E isso foi o suficiente para me deixar disperso.

— Não vai pedir desculpas? – perguntou quando se pôs de pé outra vez. – Afinal, foi você que passou que nem um louco à minha frente, como se não estivesse olhando o caminho do qual pisava!
— E não estava olhando mesmo. – consegui responder, deixando que um sorriso bobo surgisse em meus lábios.

Havia algo nela. Um brilho diferente em seu olhar, a forma como articulava as palavras, o jeito como enrolava uma mecha de cabelo no dedo e emburrava a cara ao ver as sacolas sujas em minhas mãos.
Havia algo nela e era só no que conseguia pensar enquanto meus olhos perscrutavam suas mínimas ações, desde a forma como movia os lábios ao falar até o jeito como piscava os olhos.

— Meus livros! – gritou com um certo de desespero e arrancou as sacolas de meus dedos. – Droga! – ela escondeu-se debaixo da pequena marquise da livraria e checou o estado dos livros. – Por sorte o estrago não foi tanto. Acho que dá pra salvar… – a mulher abriu a bolsa de couro nos ombros e colocou as pequenas sacolas ali dentro. Do jeito que os livros eram grandes, imaginei que não estivesse muito leve.
— Não vai machucar seu ombro? – apontei para a bolsa e ela seguiu meu olhar. – Esse peso todo?
— Melhor entortar minha coluna do que molhá-los, não acha? – a pergunta retórica saiu com uma leve irritação junto à sua voz. Logo me dei conta de que havia esquecido de dizer algo importante.
— Peço perdão pelo… pequeno acidente. – olhei para baixo e sorri sem graça, sentindo-me um pouco idiota. – Estava distraído com a chuva.
— É, eu notei que alguém aqui parece não ter crescido. – ela deu de ombros e passou por mim, deixando-me com uma sensação estranha de vazio no peito. – Procure brincar longe de pessoas normais. Assim evitará mais acidentes.
— Pode deixar, seguirei seu conselho. – respondi com ironia, mas com certo divertimento. Não havia jeito de aquela mulher me deixar de mau humor. – Não vai abrir o guarda-chuva? – perguntei ao vê-la andar sob os pingos gelados sem sequer mexer na bolsa.

Ela virou-se para mim, com os cabelos já completamente molhados e sorriu.

— Você não é a única pessoa que gosta de brincar sob a chuva.
— Mas você acabou de me mandar brincar longe de pessoas normais! – exclamei, confuso.
— Eu nunca disse que era uma delas… Disse?

A mulher ruiva piscou para mim e virou-se para sair andando.
Eu deveria ter feito o mesmo. Deveria ter tomado o meu caminho para a casa e estudar para o vestibular que iria prestar em pouquíssimo tempo. Mas meus olhos não conseguiram desgrudar-se de sua figura que se distanciava cada vez mais enquanto mil coisas passavam pela minha cabeça. Enquanto mil sentimentos dominavam minha mente.
Naquele momento, de forma inexplicável, desejei começar algo com ela.
Uma conversa, uma amizade, qualquer coisa. Qualquer coisa que ela pudesse me dar.
Qualquer coisa que pudesse esse vazio aqui dentro preencher.
Apenas o seu sorriso, o seu olhar.
A boina lilás e a franja ruiva milimetricamente alinhada à testa.
Qualquer coisa.
E os melhores encontros da vida começam a partir de um café.

— Espere! – gritei o mais alto que pude, enquanto corria em sua direção.

A mulher ruiva parou e olhou para trás com o cenho franzido. Parecia não acreditar que alguém estava chamando-a no meio da rua, debaixo de uma chuva forte e escandalosa, e correndo que nem um alienado atrás dela.
Após alcançá-la, curvei-me e coloquei as mãos sobre os joelhos, sentindo-me extremamente cansado.

— Uau, você não parece ser alguém adepto de exercícios. – comentou com escárnio ao ver meu estado vergonhoso.
— Tem razão. Ultimamente tudo o que tenho feito é passar dez horas estudando em casa. – recuperei o ar e me pus ereto para encará-la diretamente nos olhos. – Tenho um vestibular chegando.
— Você não tem cara de nerd. – seus olhos avaliaram-me de cima a baixo. – Não mesmo.
— Enfim, eu não corri até aqui para falar do meu cérebro. – respondi, divertido. – Isso pode parecer um pouco patético, mas… Está um pouco frio, chuva, vento… – mordi os lábios, ensaiando mentalmente a melhor forma de convidá-la sem parecer precipitado ou muito idiota. – Tem uma cafeteria aqui perto. Você sabe… – deixei a frase subtendida, mesmo sabendo que já parecia precipitado.
— Você quase me derruba e agora me chama para sair. Isso é diferente.
— Digno de um filme de Hollywood, não acha?
— Muito clichê e blockbuster para o meu gosto. – ela fez uma careta debochada e não pude evitar em sorrir.
— Eu, Neven, adoro clichês e blockbusters. – estiquei a mão, esperando que ela entendesse o recado.
— E eu, Mila… – ela a apertou, aceitando o cumprimento, o que me deixou muito mais aliviado. – Prefiro os filmes Cult e Independentes.
— Você pode me mostrar o seu mundo Cult, Mila. E eu te mostro o quanto um clichê pode ser especial enquanto tomamos um café. O que acha?
— É melhor não. – disparou de repente, deixando-me surpreso. – Olha, você é um cara legal e aposto que há muitas garotas merecedoras por aí. Mas eu…
— Você o que? Vai dizer que uma garota que curte filmes Cult e odeia clichê está insegura?
— Acredite, não é insegurança. – afirmou. – Eu apenas não insistiria em mim, se fosse você. – Mila fechou os olhos e suspirou, trocando o semblante divertido por um melancólico. – É complicado. Eu, bem… Eu tenho algumas coisas para fazer, com licença. – ela tentou passar por mim, mas coloquei-me na frente, impedindo sua passagem.

Algo me impelia a continuar. Muitos no meu lugar já teriam desistido. Afinal, ela era só uma mulher adorável com quem eu tinha esbarrado na saída de uma livraria. Logicamente não era nada demais.
Mas desde quando os sentimentos são lógicos?
Se fossem, tudo seria mais fácil no mundo.
E mais sem graça também.

— Posso saber o motivo? – ela revirou os olhos e pareceu um pouco enfadada com a minha insistência. – Se não gostou de mim, é só falar.
— Eu poderia dizer isso, sim… – Mila me olhou de relance e tentou reprimir um sorriso. – Mas isso seria uma mentira. Na verdade, eu sou louca. Acho que você não deveria tentar nada comigo.
— Louca? – arqueei uma sobrancelha e tentei decifrar o que ela queria dizer com aquilo. Mas nada me veio à mente. – Não vejo uma mulher louca à minha frente. Vejo alguém que parece ser muito culta e simpática.
— É que eu estou fingindo. – ela sussurrou, aproximando-se um pouco mais, como se fosse uma agente secreta que não poderia revelar sua verdadeira identidade – Se tivesse a oportunidade de me conhecer melhor, entenderia o que quero dizer.
— Eu não me importo com isso. – coloquei as mãos no bolso e lutei contra a timidez que começou a dar as caras devido à rejeição. Ela mexia comigo mais do que eu poderia suportar. E suas recusas constantes ao meu pedido começavam a abalar minha autoestima. – Você me viu brincando sozinho, debaixo dessa chuva. De fato, estamos discutindo debaixo dela agora, como se não caísse nada do céu. Só sei que eu me sinto bem perto de você, pois até esqueci o frio. – dei de ombros, chutando o balde de vez. Se ela era realmente louca, com certeza não iria se importar de ouvir esse tipo de coisas de um estranho. – Não estou te pedindo em casamento. É só uma xícara de café. Você consegue fingir ser alguém normal mais um pouquinho… Não acha?

Mila abaixou a cabeça e respirou fundo. Parecia travar uma luta dentro de si, sem saber se agarrava o sim ou o não. E eu fiquei ali, parado, esperando os longos minutos de silencio se dissiparem com uma resposta positiva.
Seus olhos levantaram-se para encontrar-se com os meus. E então, o veredicto…

— Tudo bem. Uma xícara de café. – o sorriso oblíquo em seus lábios e o semblante enigmático que prontamente assomou sua face me deixou ainda mais curioso para descobrir o que estaria por trás de toda aquela “loucura”. – Você não faz ideia com quem está lidando…
— Estou louco para descobrir! – peguei em sua mão molhada pela chuva e depositei um terno beijo sobre seus dedos. – Você não faz ideia.

Uma vez, quando era criança, perguntei à minha mãe o que era o amor. Quando sabíamos o exato momento em que nos apaixonamos, quando sabemos que aquela é a pessoa com quem queremos passar o resto de nossas vidas. E ela me respondeu que o amor era um estrago. Para o bem o para o mal, o amor era a ruína de algo. Se era a ruína da tristeza ou da felicidade de alguém, isso era relativo. Mas o amor era aquela avalanche incontrolável, que saía arrastando tudo à sua frente, sem dó nem piedade.
Na minha vida, o estrago começou com um casal desconhecido, com roupas encharcadas, sob uma chuva copiosa.
Um casal que sabia apreciar os pingos gelados e não fugir deles como se fossem mortais.
O estrago continuou quando ela abriu o primeiro sorriso e colocou uma mecha de cabelo vermelho atrás da orelha, parecendo tímida. Quando não conseguiu encarar meu olhar e tentou se esquivar, como se não necessitasse da minha presença como rapidamente necessitei da sua.
O estrago aumentou quando ela aceitou tomar essa xícara de café comigo.
E não parou mais.
O café se transformou em almoço no dia seguinte; que se transformou em um passeio pelo museu da cidade; que se transformou em um jantar sob as estrelas nuas no céu; que se transformou no primeiro beijo.
O quinze de novembro transformou-se em quinze de dezembro; que se transformou em quinze de janeiro, fevereiro, março, abril… e assim sucessivamente.
Com os dias, vieram as brigas. Com os meses vieram as pazes. Com os anos vieram as revelações. E então, finalmente entendi sua “loucura”.
Ataques. Crises de choro. Gritos no meio da madrugada, após um dia repleto de felicidade e alegrias. Traumas. Fobias. Todos esses sentimentos inundavam um pequenino corpo que parecia desesperado para livrar-se deles.
Era complicado. Era costumeiro.
Não foi apenas uma vez em que cheguei do trabalho e a encontrei encolhida no sofá, com os olhos vidrados no nada.
Não foi a primeira vez que larguei tudo no chão e corri ao seu encontro, segurando seu pequeno corpo entre meus braços.
Não foi a primeira vez que chorou copiosamente, onde seu corpo tremia tanto que parecia ter sido tomado por uma descarga elétrica.
Não foi a primeira vez que escutei palavras desconexas sobre um passado sofrível, do qual eu pensava nunca compreender com perfeição.
Não foi a primeira vez em que tive que deixar minha dor de lado para cuidar da sua.
E eu sabia que não seria a última.

— Se pudesse… – escutei sua voz baixinha, após passar duas horas no sofá com ela, abraçando-a forte a fim de livrá-la de toda a dor. – Se pudesse voltar atrás, naquele dia, em frente à livraria… Se pudesse voltar atrás e ter seguido em frente, sem ter feito aquele pedido estúpido para tomarmos um café… – Mila levantou o rosto e me encarou com os olhos vermelhos e inchados. – Se pudesse apagar isso tudo e viver uma vida normal… Você o faria?
— Nunca. – nem precisei pensar duas vezes. Respondi com extrema segurança na voz, acariciando seus cabelos vermelhos e despenteados. – Eu preciso de você, Mila. Com suas loucuras, com suas peculiaridades, com seu jeito especial… Eu preciso de você por inteira. – segurei seu rosto entre minhas mãos e regalei-lhe o sorriso mais reconfortante e genuíno que consegui. – Talvez eu nunca tenha sido muito normal também. Sempre olhei a vida de forma diferente das outras pessoas. Sempre me senti estranho, por mais que tentasse me comportar em sociedade. Sua loucura é linda, Mila. Sua loucura é fascinante, me completa, me deixa… apaixonado! Sua loucura me salvou. Me salvou de mim mesmo, me salvou deste mundo. – rocei meu nariz no dela, pronto para beijar seus lábios até o dia amanhecer assim que essa pequena conversa acabasse. – Você sabe o quanto eu te amo, não sabe? – reafirmei o que já tinha dito mil vezes, mesmo sabendo que não iria ouvir a mesma coisa.
Mila apenas concordou e tornou a deitar a cabeça sobre o meu peito.
Eu não esperava mais ouvir a frase de três letras sair de sua boca. Não fazia falta. Suas ações me diziam mais do que um caderno de duzentas folhas todo escrito com declarações de amor.
Mila era diferente porque não usava palavras. Não porque não podia – ela podia bastante bem, principalmente quando estava excitada com alguma coisa e não parava de tagarelar sobre aquilo. Não usava porque não queria. Estava cheia delas; não as suportava mais.
Passou metade de sua vida ouvindo palavras ilusórias adentrar seus ouvidos. E acreditara nelas. Com afinco.
Tudo isso para depois descobrir que nenhuma era verdadeira.
Ela jamais diria que me amava com letras completas e eu entendia isso.
Não cobrava.
Não cobraria.
Não tinha necessidade, pois tinha plena certeza de seus sentimentos. Sabia o quanto eu era importante na sua vida.

— Mas é muito difícil. – sua voz triste e rouca reiniciou a conversa, afastando-me do mundo de pensamentos. – Eu não me agüentaria se estivesse no seu lugar.
— Ainda bem que existe um “eu” nesse mundo, e não duas de você, não é? – beijei sua fronte e limpei as lágrimas que rolavam de seus olhos. – Eu te amo, Mila. E estarei aqui para dizer-te isso cada vez que se esquecer. Cada vez que tiver uma crise e se sentir vazia, desamparada. Não importa quantas vezes o tenha dito, direi mais uma vez, se você precisar.
— Por que você faz isso? Por que ainda fica? Você não é normal, Neven.
— Então cada vez tenho mais certeza que estou com a pessoa certa.

Ela pareceu finalmente se convencer e beijou meus lábios. Tocou-me com ternura, invadiu minha alma com sua luz e seu amor. Porque eu sentia o amor de Mila em cada toque, em cada beijo, em cada olhar. E isso era mais do que suficiente para a minha felicidade.
Meus amigos não entendiam. Não entendiam porque eu agüentava seus fantasmas durante todos esses anos. Porque saía das festas correndo para segurar uma de suas crises de personalidade, porque eu dedicava toda minha atenção a uma mulher como se fosse uma criança. Afinal, existiam muitas no mundo, eles diziam. Como alguém poderia querer viver com uma mulher cheia de distúrbios pelo resto da vida?
Reclamavam, criticavam, questionavam; chamavam-na de louca por seu comportamento singular e distinto.
Diziam que eu não estava vivendo minha vida por sua causa. Eu era jovem, inteligente, com um ótimo emprego… Poderia ter a mulher que eu quisesse. Mas eles não sabiam? Eu já tinha essa mulher em meus braços.
As perguntas viam bombardeando-me diariamente e a resposta era sempre a mesma:  Eu a amava. Assim, pura e simplesmente. Não havia outro motivo, não havia qualquer outro sinônimo. Eu a amava por ser ela, por ser minha Mila, minha menina de olhos verdes e com boina lilás que eu jamais a deixava jogar fora.

— Neven, tem alguma coisa em minhas costas? – perguntou em uma tarde de domingo, onde assistíamos a um dos seus amados filmes Cult, dos quais eu raramente entendia.
— Não, Mila, claro que não. – observei com cuidado o seu corpo deitado de bruços no sofá. – Não tem nada aí.
— Tem certeza? Eu to sentindo alguma coisa… – sua mão fez malabarismos para alcançar todos os pontos de suas costas. – Mais ou menos aqui… – seus dedos indicaram sua omoplata.
— Não tem nada aí, Mila. – toquei o mesmo local, procurando algum machucado ou algo do tipo. – Está sentindo algum tipo de dor?
— Não, é só… um peso, sei lá. – Mila enrugou um nariz, como se fosse uma criança emburrada. – Ai, que saco, está me incomodando!

Ela ficou obcecada com essa idéia, tocava a região sem parar, com o rosto franzido, e logo notei que era mais alguma de suas crises.
Quando Mila ficava paranóica com algo, tinha que dar um jeito de fazê-la mudar de ideia, como se estivesse lidando com uma criança. E estava ficando tão experiente nisso, que logo achei a explicação perfeita.

— Ah, agora estou vendo! – disse, deslizando minha mão com cautela por toda a região de suas costas. – São tão brancas, quase invisíveis…
— O que é? – me olhou com curiosidade.
— São asas. – sorri divertido, vendo seus olhos se iluminarem. A essa altura já tinha perdido totalmente o fio da meada do filme. – Asas de fada. Não sabia que era uma fada, Mila?
— Sou? – ela piscava sem parar, com cara de boba, adorando aquela ideia.
— Claro! – afirmei, acreditando de fato naquilo. – Você mesma diz que é diferente das outras pessoas. Acho que agora achamos a explicação. Você é uma fadinha que veio a esse mundo apenas para se encontrar com um humano simplório como eu. Por isso suas asas ficaram invisíveis e você apenas sente o peso delas.
— Isso faz sentido. – Mila sentou-se no sofá de frente pra mim e passou seus braços ao redor do meu pescoço. – E jamais se chame de simplório outra vez. Simples são as pessoas sem graça que vivem por esse mundo com o nariz empinado e se comportando como robôs, imitando umas às outras. Você é meu tudo. Se voltar a se chamar assim outra vez, usarei meu pó de fada para te dar um castigo. Combinado? – ela roçou de leve o seu nariz com o meu, em um beijinho de esquimó. Adorávamos fazer aquilo.
— Combinado, minha fada. – meus lábios tomaram os seus com desejo e nos perdemos entre beijos e carinhos que duraram até à noite.

E após desse episódio, passei a chamá-la assim sempre que podia.
Mila não era louca. Pelo menos não para mim.
Ela era apenas mais um ser humano que caminhava por esse mundo com uma pesada cruz nas costas e uma corrente de ferro amarrada aos seus pés.
E sangrava.
Muito.
Mas ainda assim, seguia caminhando.
Porém rotularam-na por ser diferente. Porque não se comportava como as outras mulheres, não parecia como as outras mulheres e não falava como as outras mulheres. Tinha sua própria individualidade e uma personalidade extremamente forte. Se rebelava sempre que se via presa às regras de comportamento ditadas pela sociedade.
E, por isso, era julgada.
Mila era uma artista do mais alto nível. Vendia seus quadros pintados à giz de cera e, mesmo ganhando pouco, ganhava o suficiente para viver.
Suas mãos viviam sujas e borradas de giz, principalmente o preto, que era a cor que mais usava. Muitas pessoas achavam aquilo feio. Mila não cuidava das unhas e estavam sempre impregnadas de tinta. Muitas pessoas torciam o nariz e diziam que era horrível uma mulher que não tinha vaidade. Mas eu sabia que era muito mais do que isso.

— Pra que sofrer pra cuidar delas se, assim que acabar, mergulharei no mundo da arte e as sujarei outra vez? – essa foi a resposta que recebi quando perguntei o motivo pela primeira vez. – Prefiro morrer do que evitar pintar para não sujar as unhas. São só unhas, no fim das contas. Meus desenhos são minha alma.

Eu achava isso fascinante. Se minha admiração por aquele espírito crescesse um pouquinho mais, com certeza meu peito iria explodir. Não importava o que dissessem, eu achava a minha mulher a pessoa mais incrível do mundo. Seja ela normal ou não.
Mila podia ser instável. Mila podia ser frágil – com uma certa freqüência, até. Mas não uma fragilidade temperamental e sem sentido.
Após ser apresentado ao seu passado e a forma como o enfrentou, valorizei cada lágrima que rolava meu de rosto, sem rumo. Ela era essa antítese de fragilidade e fortaleza inimaginável. E não importava o que dissessem, eu tinha o maior orgulho de gritar aos quatro ventos que eu era o escolhido de um ser de outro mundo, um ser que vivia em seu próprio mundo. E este… Ah, este era especial! Cheio das formas mais belas e apaixonantes, quando não era subitamente invadido por fantasmas que começavam a assombrá-la repentinamente.
Muitos dizem que ela é a sortuda de ter encontrado alguém equilibrado como eu. Mas eu sempre digo – e não me canso de repetir – que sou o afortunado por ter tido o privilégio de receber o amor puro de uma fada.
Ser normal era entediante. No fim das contas, os loucos são as melhores pessoas que você pode vir a conhecer. E são chamados de loucos porque suas mentes estão anos-luz na frente dos que se consideram ordinários.

— Neven, você acredita em reencarnação?

Gaivotas voavam acima de nossos olhos.
Deitados na areia praia, olhando para o céu azul despido de nuvens, essa pergunta peculiar saiu de seus lábios como uma doce canção.
Virei meu rosto e observei seu olhar perdido no infinito céu acima de nós.
Sorri.
Essa imagem de nós dois poderia ser transposta para uma de suas lindas telas de pintura à cera. Na minha mente eu poderia ver o quadro pendurado no centro de nosso apartamento.
Sim, eu podia.
E havia ficado perfeito. Porque éramos perfeitos. Eu para ela; ela para mim.
Éramos perfeitos em nossas próprias loucuras.

— Não sei. – respondi sua pergunta após longos minutos de silêncio. – Às vezes sim, às vezes não.
— Posso te fazer um pedido? – ela finalmente olhou para mim, transmitindo bastante seriedade em sua fisionomia.
— O que quiser, minha fada. – escorreguei minha mão até encontrar seus dedos relaxados na areia da praia.
— Acredite. – ela apertou minha mão com força e seu olhar foi invadido por um sentimento de medo que eu não sabia como havia surgido. Com Mila era assim: as coisas simplesmente chegavam, sem você nunca descobrir por onde haviam entrado. E tudo o que eu tinha que fazer era dar o máximo de mim para expulsar os demônios intrusos sempre que se atreviam a apoderar-se de sua límpida alma. – Eu não suporto a ideia de estar ao seu lado apenas neste mundo, apenas aqui. Tenho medo de pensar nisso. – seus dentes morderam seus próprios lábios com força e uma lágrima prateada escapuliu de seu olho esquerdo. – De que eu possa vir a ser louca em alguma outra dimensão e que você não esteja lá. Ou que após a morte só exista um vazio negro, onde eu sempre terei de lidar com meus pensamentos confusos sozinha. Acredite comigo, Neven, por favor. Acredite que estaremos juntos através dos séculos… Com outros corpos, outros nomes… Mas com a mesma alma. Acredite… por mim. Talvez, se acreditarmos juntos, possa ser real.
— Eu acredito. – pus meu corpo sobre o seu e enchi seu rosto e sua pele de beijos sinceros e apaixonados. – Se você acredita, eu também acredito. Onde quer que você esteja, estarei logo atrás. É só não ter medo e virar o rosto. Estarei lá.
— Você promete? – perguntou, com os olhos vulneráveis, segurando meu rosto entre suas pequeninas mãos.
— Sempre.

XX

E havíamos parado aqui.
Após oito anos, nesse apartamento aconchegante, onde nossos sentimentos mais sinceros pintavam com cores a atmosfera do local.
Oito anos e ainda a amava como na primeira vez.
Oito anos e com a plena certeza de que continuaria amando-a ao longo de minhas futuras vidas.
Porque Mila era especial, em todos os sentidos da palavra. Foi feita cuidadosamente por alguém lá em cima, cheia de defeitos e problemas e mandada para mim.
Acreditava fielmente que era o único homem na face da Terra capaz de amá-la com todas as suas peculiaridades. E desejava ardentemente que ela jamais fosse normal como as outras pessoas.
Seu corpo e sua personalidade haviam feitos sob medida para mim.
Peço a Deus, todo o santo dia, que ele faça a bondade de me regalar a mesma mente torturada nas próximas encarnações, como Mila me fizera acreditar.
Deslizei meu corpo em sua direção e passei o braço ao redor de sua pequena figura, atraindo-a mais para perto de mim.
Seus olhos cerrados indicavam que sua cabeça criativa já passeava pelo doce vale dos sonhos. Mesmo assim, pus meus lábios ao pé de seu ouvido e deixei que minha voz sussurrasse com precisão as palavras que definiam os sentimentos de meu espírito pelo dela.
— Eu te amo também. – após oito anos, era a primeira vez que dizia a última palavra. E a sensação era boa demais. – Incondicionalmente. Com loucura.

Sentindo-me emocionado, deixei meu corpo cair sobre o colchão e admirei seu belo rosto mais uma vez.
Seus lábios esticaram-se em um sorriso inocente, ainda que sua respiração pesada indicasse que se encontrava verdadeiramente adormecida.
Em algum lugar de sua mente, de seus sonhos sagrados, minha voz ressoou como uma bênção para o seu sono. Ela me escutou. E onde quer que estivesse, em qualquer parte de seu mundo interior que pudesse estar visitando agora, Mila tinha uma certeza: ela não estava sozinha.
Porque eu seria e estaria louco com ela.
Era só ela olhar para trás e eu estaria lá.
Até o fim dos tempos.

Fim.