Seattle, Washington.
Maio de 2002.
Ela esperou a semana inteira por este momento.
A pequena Lois podia sentir o sangue ferver nas veias antes de entrar no palco. Dentro de seu corpo havia um misto de vergonha, ansiedade, animação e medo. Sentia tudo ao mesmo tempo.
Quando as cortinas se abriram e entrou no palco, a primeira coisa que fez foi procurar sua mãe na plateia. Queria que ela visse o quanto havia se preparado, o quanto poderia ser boa em alguma coisa, já que suas notas nas disciplinas tradicionais faziam sua mãe chorar de desgosto. Mas com as artes era diferente. Com as artes ela realmente se sentia em casa e parecia que tudo fluía com mais facilidade. Queria que a mãe, pela primeira vez, sentisse orgulho da filha que tinha.
As mães das outras crianças batiam palmas, tiravam fotos, gritavam o nome dos filhos, celebravam a peça infantil da escola como se fosse um espetáculo de Shakespeare. Tudo o que mais desejava era ver sua mãe fazendo o mesmo. Mas a pequena Lois descobriria cedo demais que querer não é poder e que sua mãe não estava na plateia. E soube disso assim que avistou Eleanor, a vizinha doce e prestativa que sempre cuidava de Lois quando Anne Morrison precisava trabalhar até mais tarde.
Eleanor aplaudia a menina e tirava fotos, torcendo por ela. Gostava muito da mulher, mas ela não era quem a menina precisava. Ela não era sua mãe.
A menina tentou ignorar sua decepção e decidiu se concentrar no que precisava fazer. Em meio a toda aquela gente sorrindo, Lois usava de toda a força que ainda tinha para não se derramar em água ali mesmo, em cima de um palco, na frente de todo mundo. Sorte que era apenas umas das três florzinhas da peça infantil e não tinha muitas falas, então sua péssima atuação não fez muita diferença. Falou o que precisava falar e ninguém prestou muita atenção no desespero que expressava em seus olhos.
A peça acabou normalmente. Havia corrido tudo bem. Pelo menos para as outras crianças e para as mães orgulhosas na plateia. Para Lois, nada estava bem.
Quando Eleanor veio ao seu encontro para abraçá-la, Lois mal conseguia se mover. Sem poder disfarçar os olhos marejados, levantou a cabeça e perguntou:
— Onde está minha mãe?
— Oh, querida, ela pediu mil desculpas por não poder estar presente. – explicou Eleanor com todo o cuidado do mundo. – Não fique chateada, é por uma boa causa. Ela precisou ficar no trabalho fazendo hora extra para conseguir pagar as dívidas no banco. Anne quer te dar uma vida melhor, você sabe que… – antes da mulher acabar de falar, Lois saiu em disparada em direção a qualquer lugar. – Lois! Espera! Volte aqui!
Eleanor ainda tentou correr atrás da menina, mas as pernas de Lois ganhavam uma velocidade extra quando precisava fugir de todos e estar sozinha. Correu e correu, passando por pessoas que mal conseguia ver o rosto, até encontrar o portão das escadas. Subiu os degraus sem sequer olhar pra baixo até que todo o barulho do evento lá fora ficasse bem distante e se sentou entre as escadas do terceiro e quarto andar.
Percebendo-se finalmente sozinha, permitiu que toda a água que conteve no corpo durante a última hora saísse, liberando a profunda frustração e raiva que sentia.
Lois não queria uma vida melhor, queria apenas que sua mãe pudesse estar presente em um momento tão importante. Depois de toda a semana de ensaios, depois de ter prometido que iria à escola ver sua primeira peça, não era justo que tivesse desistido em cima da hora. Ela havia prometido e Lois havia acreditado na promessa. Por não ter mais ninguém para chamar de família, sua mãe era a única pessoa da qual precisava. Não era justo. Não era!
A menina rasgou a fantasia que ainda vestia e permaneceu no mesmo lugar por quase uma hora, chorando copiosamente, esperando que alguém viesse ao seu resgate, esperando mãos amigas que pudessem acariciar suas costas, alguém que pudesse abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Mas ninguém apareceu.
Um estrondo assustador ecoou no céu, fazendo seu corpo saltar com o susto. Olhando pela janela das escadas, viu que se aproximava uma tempestade. Lois tinha pavor de tempestades, mas naquele momento desejou que um furacão invadisse a cidade e a levasse para bem longe. Para um lugar onde ela poderia pertencer, um lugar onde não tivesse a sensação diária de sufocamento, onde pudesse encontrar uma família de verdade.
Qualquer que fosse este lugar, não importava. Ela só queria ir embora, bater suas asas e voar como um pássaro por todo o mundo, até que pudesse encontrar um lugar para chamar de seu. Um lugar onde, finalmente, poderia chamar de lar…
Cidade de Nova York, Nova York.
Maio de 2002.
“Phoenix, cidade localizada na região central do Arizona, é uma das cinco cidades mais populosas dos Estados Unidos. Rodeada pelo Deserto de Sonora, a cidade possui verões muito quentes e um clima bastante árido. Um lugar repleto de cultura, vasta gastronomia, arquitetura moderna e…”
— Amor?
A voz que preencheu o quarto repentinamente fez com que Brandon fechasse o notebook como se sua vida dependesse disso.
Olhando para trás, viu o rosto feliz de Kerry. Seus olhos o olhavam como se ele fosse um precioso tesouro e Brandon sorriu um sorriso meio amarelo, sentindo-se culpado por não conseguir sentir a mesma coisa pela namorada já há algum tempo.
— Está escondendo o que aí? – perguntou Kerry, percebendo como Brandon havia fechado o notebook rápido demais.
— Nada, só pesquisando algumas coisas. – desconversou, colocando o notebook sobre a escrivaninha.
— Espero que essa pesquisa seja sobre alguma faculdade da Ivy League para você se inscrever, pois se seu pai sequer desconfiar que andou pensando em não seguir para o ensino superior…
— Isso, era exatamente o que estava fazendo – disse com toda a convicção que conseguiu. – Mas o que houve?
— Nada, não posso vir ver meu namorado? – ela se aproximou, dando um rápido beijo em seus lábios.
— Você está com cara de que tem alguma novidade para me contar.
— Eu amo o quanto você me conhece só de olhar! – ela disse com efusividade, pensando ser a única por quem seu namorado tinha tal atenção. – Mamãe vai me dar uma viagem à Paris no meu aniversário! Vou passar uma semana lá, estou tão animada!
— Você fala como se não tivesse visitado a cidade, umas… cinco vezes? – disse Brandon, revirando os olhos.
— Não importa! Paris é sempre Paris! – Kerry suspirou, já imaginando em sua cabeça todo o roteiro que iria fazer pela cidade. – Você quer ir comigo?
— Ahn, não sei. – respondeu um desanimado Brandon, coçando a nuca. – Preciso estudar para os exames finais.
— Brandon, você é um CDF que tirou um A em todas as matérias. Mesmo que deixe de fazer uma prova você ainda vai ter média o bastante para passar. – observou.
— Não é só por mim. – explicou, desviando o olhar. – Estou ajudando Tim Clark com aulas extras de filosofia e não acho justo desmarcar uma semana de estudos com ele para ir a uma cidade que já conheço de cor.
— Você realmente vai trocar uma semana romântica no aniversário de sua namorada em Paris para ajudar o estúpido do Tim Clark? – Kerry cruzou os braços, enfadada com aquela conversa.
— Não é questão de trocar, Kerry, é questão de manter a palavra. – respondeu com firmeza. – Eu dei a minha palavra que iria ajudá-lo a passar na matéria e gosto de cumprir com o que prometo.
— Eu tenho mesmo que te amar muito, porque às vezes, sinceramente, você é completamente irritante. – Kerry revirou os olhos e bufou com frustração. – Pelo menos está cobrando pelas aulas extras?
— Kerry, eu acabei de descobrir que meus pais me deixaram uma conta no banco que custeia duas faculdades em qualquer lugar do país com sobras. Por que eu iria cobrar algum dólar de um garoto que estuda em nossa escola com bolsa de estudos integral?
— Por que é o certo a fazer quando a gente faz algum tipo de trabalho, independente de quanto temos na conta? – respondeu em tom debochado, sendo incapaz de acreditar que Brandon relutava em aceitar algo tão óbvio.
— Isso não é um trabalho, eu estou ajudando um colega de classe que sempre me tratou muito bem e sofre bullying da classe inteira. – disse com toda a calma que conseguiu, tentando mascarar sua crescente irritação pelas pontuações da namorada. – Eu jamais cobraria um centavo, mesmo que não fosse filho de quem sou.
— Eu acho melhor eu sair desse quarto antes que a gente discuta mais a sério, porque, eu juro, não consigo entender como alguém como você pode existir. – ela se virou para sair, a fim de evitar começar mais uma das brigas constantes que estavam tendo nos últimos tempos. – Eu ligo mais tarde.
Kerry saiu do quarto e bateu a porta, sem querer esconder toda a irritação com o namorado que às vezes parecia ter vindo de outro planeta.
Brandon deu de ombros e deixou que ela fosse. Também já estava ficando aborrecido com o jeito de falar de Kerry e com o fato de que não conseguia mais se conectar com a namorada como o fez um dia. Cada vez mais sentia dentro de si a necessidade de estar sozinho, sem ninguém a quem dar satisfações, para conseguir compreender mais a fundo os sentimentos confusos que angustiavam seu coração desde o início do ano. Era como se uma chave estivesse virando dentro dele e não sabia o que fazer com isso. Sabia que a adolescência era um momento difícil para todo ser em qualquer parte do mundo, mas não imaginava que fosse dessa forma. Não imaginava que, a cada dia que passava, ele sentia estar se transformando em outra pessoa, em alguém muito diferente de todos naquela cidade.
Algumas ideias rondavam sua cabeça, ideias que ele não conseguia deixar de pensar um minuto sequer. Sabia que seu pai e todos os amigos da família tinham planos para ele, principalmente por ser um dos melhores alunos de sua classe, mas Brandon sentia cada vez mais dentro de si que seu caminho não era um caminho em linha reta. Sempre teve uma sensação de distância das pessoas ao redor, do círculo da alta sociedade de Nova York, e não se via vivendo uma vida como a deles. Depois de tudo o que já tinha visto e aprendido em seus dezessete anos de vida, tinha cada vez mais claro em sua mente que seu destino era muito mais do que fazer uma faculdade, arranjar um emprego comum, encontrar qualquer mulher para casar, ter filhos, se aposentar e morrer. Sabia que sua verdadeira vida não estava ali entre aquelas pessoas, naquele mesmo lugar onde havia nascido e crescido.
Como uma ave que está amadurecendo o suficiente para sair do ninho, Brandon precisava voar para bem longe, a fim de encontrar seu caminho e entender mais sobre quem era de verdade, longe tudo o que sempre lhe foi imposto como certo.
Sentando-se na cadeira em frente à escrivaninha, o rapaz abriu novamente o notebook e passou longos minutos lendo e relendo a matéria sobre a cidade de Phoenix, no Arizona. Era um lugar que ele ainda não conhecia e parecia ter tudo o que precisava. Além do mais, o nome que remetia ao pássaro mitológico trazia a sensação de uma oportunidade de recomeço, uma oportunidade de queimar tão profundamente a ponto de se tornar algo novo, algo totalmente diferente. Ainda era muito cedo para tomar uma decisão, uma vez que precisava terminar a escola e se sentir seguro o bastante para viver uma vida afastado do seu pai depois de tudo o que enfrentaram juntos. Mas se tinha algo que Brandon Reed já sabia era que seu futuro não estava em Nova York. E já estava na hora de buscar o seu verdadeiro lugar no mundo.